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Há muito a revelar sobre as entranhas da Lava Jato e falta atribuir as devidas responsabilidades

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Revelação. O hacker Walter Delgatti (abaixo) expôs as entranhas da força-tarefa comandada por Dallagnol, o Torquemada de Curitiba – Imagem: Geraldo Bubniak/AGB/Estadão Conteúdo e Lula Marques/ABR
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O bolsonarismo é filho legítimo do lavajatismo. Nem o mais convicto entusiasta dos métodos lavajatistas poderia negar a relação indissociável entre eles e a ascensão do bolsonarismo golpista, bem resumida pelo ministro Gilmar Mendes, do STF: “A Lava Jato é pai e é mãe do bolsonarismo”. Após uma década do início da Operação Lava Jato, que resultou na deposição fraudulenta da presidenta Dilma Rousseff e na tentativa de deposição violenta do presidente Lula, é inevitável concluir que atribuir as devidas responsabilidades é um ato necessário, pedagógico e civilizatório.

Durante sua sabatina no Senado, o ministro Luís Roberto Barroso identificou o julgamento da AP 470 como um ponto fora da curva: “Eu acho que o Mensalão foi, por muitas razões, um ponto fora da curva, mas não correspondeu a um endurecimento geral do Supremo no caso específico”. A história nos mostrou que não era apenas um ponto, mas o início de uma nova curva. Um novo arco histórico autoritário: o julgamento do Mensalão foi o primeiro passo do atual modelo do processo penal de exceção, segundo o qual o sistema de justiça criminal passou a ser manipulado de acordo com conveniências políticas e eleitorais, seletivamente direcionadas pelo poder econômico e pelo sistema midiático.

A semente plantada pelo STF germinou na chamada Lava Jato, e o processo penal deixou de ter por objeto a apuração de um fato concreto para materializar-se em perseguição direcionada a alvos politicamente selecionados. Por meio de delações premiadas ilegais, e mediante conduções coercitivas também ilegais e ameaças de prisão arbitrárias com o intuito de inviabilizar a defesa, a operação foi julgada por diversos segmentos do nosso sistema de justiça, conforme a pressão do sistema econômico e de diversos veículos de comunicação. Foram impostas dezenas de punições antecipadas mediante prisões cautelares ilegais e vazamentos seletivos a serviço do espetáculo de execração pública antes mesmo de um julgamento oficial.

A operação é o pai e a mãe do bolsonarismo

A pretexto de se combater a corrupção, elegeu-se um “inimigo público número 1”, que passou a ser incessantemente perseguido policial, judicial e midiaticamente. Tratando-se de rótulo abstrato capaz de dissimular a perseguição concreta e seletiva dos adversários políticos, é importante registrar que o “combate à corrupção” atende quase sempre aos interesses do poder econômico em nosso País, tal qual o “combate ao terrorismo” no direito estadunidense.

Nesse ponto, é irretocável a lição de Eugenio Raúl Zaffaroni, para quem “tanto o crime organizado como a corrupção são funcionais para habilitar o poder punitivo e a intromissão do Estado em qualquer atividade econômica incômoda ao governo de plantão ou que seja útil para eliminar ou difamar os competidores, sem os limites nem as garantias constitucionais para tais intervenções”.

Hoje, está claro que a anunciada “luta contra a corrupção” não passou de cavalo de Troia onde se ocultava um projeto político, econômico e ideológico contrário à soberania popular, que havia sido derrotado nas urnas, e que ascendeu, a partir de 2016, fraudulentamente ao poder. A curva autoritária da década de 2010 nos deixou a lição de que não existe verdadeiro combate à corrupção sem instituições republicanas independentes, imparciais e ­leais à Constituição. Nenhuma corrupção é maior do que a própria degeneração da soberania popular e dos direitos fundamentais pelas práticas dos hipócritas e moralistas de plantão. Revelar esse jogo de aparências e descortinar os mecanismos tirânicos fraudulentos é a nossa oportunidade de iluminar os caminhos da resistência democrática em prol dos valores constitucionais e da soberania popular.

Hoje sabemos boa parte do que se passou na última década. Graças a Walter Delgatti Neto, que entrou para a história como o “hacker de Araraquara”, é possível conhecer a verdade sobre a operação. Os milhares de gigabytes que se encontram em poder da Justiça contêm diálogos capazes de revelar os segredos inconfessáveis do projeto político de Sergio Moro e de seus comparsas do Ministério Público. Abrir essa caixa-preta é tarefa urgente, que possibilitará desvendar a manipulação fraudulenta do sistema de justiça e esclarecerá os verdadeiros interesses que alimentaram a Lava Jato.

Projeto. Derrubar Dilma Rousseff fazia parte dos planos – Imagem: Luis Macedo/Ag. Câmara

O material obtido por Delgatti Neto, hoje em poder da Justiça, contém mensagens funcionais trocadas entre os integrantes da autodenominada força-tarefa e o então juiz Sergio Moro. Tais mensagens dizem respeito ao exercício do cargo ou função pública e não estão acobertadas pelo sigilo de comunicações.

Trata-se do direito fundamental à informação, inerente ao Estado Democrático de Direito e contemplado no art. 5º, XXXIII, da Constituição Federal: “Todos têm direito a receber dos órgãos públicos informações de seu interesse particular, ou de interesse coletivo ou geral, que serão prestadas no prazo da lei, sob pena de responsabilidade, ressalvadas aquelas cujo sigilo seja imprescindível à segurança da sociedade e do Estado”.

Assim, é legítimo que um grupo de funcionários públicos possa se reunir presencial ou virtualmente para tratar de assuntos particulares, afetivos e reservados, assim como com quaisquer cidadãos, sem que haja nenhum interesse público nessa reunião. Todavia, se esse mesmo grupo de funcionários públicos passar a se reunir para discussão de questões funcionais e estratégicas relacionadas ao exercício do cargo público que ocupam, não há que se invocar o mesmo direito à privacidade e à intimidade inerente a qualquer cidadão. Ao contrário, quando a comunicação funcional busca guarida em mecanismos sigilosos, os agentes públicos devem prestar contas sobre as razões da confidencialidade, sob pena de violação ao direito fundamental à informação.

A “luta contra a corrupção” ocultava um projeto político, econômico e ideológico

No caso, as mensagens apreendidas pela Operação Spoofing revelam que um grupo de procuradores mantinha frequentes diálogos pelo aplicativo Telegram, entre si, com o então juiz Moro e com autoridades estrangeiras, situações nas quais elaboravam estratégias, desempenhavam funções públicas e praticavam atos processuais. Nesse cenário, é preciso trazer à luz a manipulação autoritária do processo penal que há muito denunciávamos, por um grupo hoje reconhecido nos tribunais como “esquadrão da morte” e apontado na mídia como “gangue de Curitiba”. O conteú­do dos diálogos, por si só, revela a existência de uma organização formada por agentes públicos que se valeram da manipulação fraudulenta do sistema de justiça para ocultar a implementação de um projeto político e ideológico de poder, contando com a participação de agentes estrangeiros, cujo propósito parece ter sido a violação da soberania nacional, a obtenção de vantagens pessoais indevidas, a satisfação de seus interesses ou sentimentos e o aniquilamento do Estado de Direito.

Portanto, não há que se falar em sigilo das mensagens funcionais apreendidas pela Spoofing. É imperativo que todas as mensagens funcionais sejam publicizadas, não apenas na defesa dos réus (pessoas físicas e jurídicas) alvejados pelos métodos tirânicos lavajatistas, mas, principalmente, para que se proceda à devida apuração da responsabilidade disciplinar e criminal de todos os envolvidos, em atenção aos princípios da indisponibilidade do interesse público e da supremacia do interesse público sobre o interesse privado.

Hoje, é consenso que a Lava Jato foi uma fraude. Sabemos que não houve processo, apenas a dissimulação de uma caçada contra o inimigo político da ocasião. Nunca se buscou justiça, apenas a implementação fraudulenta de um projeto ideo­lógico de poder, raiz do bolsonarismo golpista. O reconhecimento pelo Supremo Tribunal Federal de tudo o que todos sabemos foi apenas o primeiro passo. Não podemos nos contentar com meias verdades de uma caixa-preta entreaberta. Punir agentes públicos que afrontaram a Constituição e a soberania popular é um ato necessário, pedagógico e civilizatório. Se é verdade que os réus indevidamente punidos devem ter seus processos anulados e seus “acordos” revistos, não é menos importante que o sistema de justiça responsabilize aqueles que agiram ilegalmente em nome do Estado.

O direito à intimidade não pode servir de escudo para que agentes públicos conspirem contra o Estado Democrático de Direito, pois direitos fundamentais devem ser limites e nunca instrumentos da violência estatal. Todos os réus ilegalmente alvejados pelo lavajatismo merecem um julgamento justo, mas, acima de tudo, o povo merece conhecer a verdade, punindo-se os abusos e preservando-se a memória histórica dos erros e acertos, para que possamos resistir a futuros atentados à democracia.

Embala que é teu. Os fanáticos de verde-amarelo são filhotes do lavajatismo – Imagem: Rovena Rosa/ABR

P.S.: A Lava Jato, em um rápido balanço, deixou no País um rastro luminoso de destruição e miséria. Instrumentalizada por interesses políticos, eleitorais e econômicos, a operação foi responsável pela perda assustadora de quase 4 milhões e meio de postos de trabalho. A ação criminosa da “República de Curitiba” desestruturou setores importantes da indústria, notadamente o da construção civil, naval e de petróleo e gás. O País perdeu, com a ação messiânica de Deltan Dallagnol, Moro e cia., mais de 50 bilhões de reais em impostos e quase 200 bilhões de reais em investimentos. Estima-se ainda que milhares de engenheiros tenham deixado o Brasil. Suas principais lideranças, de forma consciente e deliberada, sujaram as mãos de sangue para eleger Jair Bolsonaro, em uma decisão ousada e arriscada de abraçar uma atividade que tanto criminalizaram. Hoje, por ironia do destino, é essa atividade que os escorraça da vida pública. Moro, em breve, terá o mesmo destino de ­Dallagnol. Terá cassado o mandato de senador e sairá da história, ao lado dos “filhos de Januário”, pela porta dos fundos.

Que se busquem, agora, com a exumação desse cadáver que fede e apodrece a olhos vistos as devidas responsabilizações. Nada será capaz de restituir ao ­País, às empresas e aos cidadãos os prejuízos provocados em suas atividades e vidas, mas que o legado de todos esses desmandos seja o fortalecimento de mecanismos para evitá-los no futuro. •


*Advogados e integrantes do Grupo Prerrogativas.

Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.

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