Política
Caçadora de racistas
Reeleita com o provocativo epíteto, Luana Alves não teme enfrentar temas espinhosos na Câmara Municipal


Pela primeira vez na história, a capital paulista reelegeu vereadoras negras. Luana Alves, do PSOL, e Sonaira Fernandes, do PL, são as primeiras mulheres negras a conquistar a manutenção do mandato em mais de 70 anos do Legislativo municipal. Apesar do feito, é improvável que elas venham a atuar em parceria, em prol de alguma causa comum. Em campos políticos antagônicos, Alves foca em projetos antirracistas, na valorização do SUS e da educação pública, enquanto Fernandes, eleita com o apoio do clã Bolsonaro, se declara “antifeminista”, defensora de valores cristãos e contrária ao aborto até mesmo nos casos previstos em lei, quando a gravidez é decorrente de estupro, traz riscos à vida da mãe ou gera um feto anencéfalo.
Apesar de ter a maior bancada feminina de sua história (20 representantes) e do número recorde de vereadores negros (14 no total), a Câmara Municipal continua tão conservadora quanto antes, talvez a atual legislatura seja até um pouco mais reacionária, avalia Alves. Dois terços das cadeiras são ocupados pela direita ou pela extrema-direita, e apenas um terço pelo campo progressista, estima a vereadora. Reeleita com o epíteto “Caçadora de Racistas”, ela esclarece que a pauta antirracista vai muito além de questões de identidade e raça. Defender o fim do trabalho exploratório, mais investimento nas escolas municipais e o fortalecimento do SUS são formas de melhorar as condições de vida de todos os trabalhadores, mas acabam por beneficiar ainda mais as pessoas negras e mulheres periféricas, que mais dependem dos serviços públicos.
Em seu primeiro mandato, a psolista conseguiu aprovar projetos importantes nessa linha, entre eles a Lei Escola Sem Racismo, cujo objetivo é tornar obrigatória a formação de professores para a promoção da igualdade racial, tanto na rede pública quanto na privada. “O desafio agora é fazer a lei ser cumprida na prática.” Se entre os 55 vereadores paulistanos ainda há quem defenda o legado do bandeirante Manuel de Borba Gato, Alves luta para aprovar um Projeto de Lei chamado “São Paulo É Solo Preto e Indígena”. A ideia é substituir nomes de logradouros que homenageiam escravocratas e eugenistas por referências históricas que se destacaram pela construção de uma cidade mais justa e igualitária. Da mesma forma, pretende-se retirar monumentos e estátuas de escravocratas, como a do próprio Borba Gato, localizada no distrito de Santo Amaro, e reconhecer o tombamento como patrimônio histórico de territórios que carregam significados de luta e resistência, como áreas quilombolas e indígenas.
Psicóloga especializada em Saúde Coletiva e Atenção Primária, Alves faz da luta por um SUS mais forte seu norte para o novo mandato. Logo na primeira sessão do ano, em 1º de janeiro, apresentou um projeto para cobrar IPTU mais caro dos super-ricos e destinar os recursos para a saúde. A proposta prevê uma taxa adicional para imóveis avaliados em mais de 7 milhões de reais. Mesmo ciente da dificuldade de fazer o projeto avançar no Legislativo, a vereadora acredita ser uma oportunidade para “pautar o debate” e fazer os colegas se pronunciarem sobre o tema.
A preocupação com o subfinanciamento do SUS é antiga. Antes de ser eleita a vereadora mais jovem da capital, em 2020, ela trabalhava como psicóloga em Unidades Básicas de Saúde da Zona Oeste. O contato com a população pobre e fragilizada tornou-a “cada dia mais socialista”, assevera Alves. “O dia a dia com os meus pacientes me mostrou a necessidade de uma mudança radical e profunda na sociedade.” No consultório, ela deparou-se com histórias muito duras: “Mães que tiveram seus filhos assassinados pela polícia, mulheres que trabalharam por 50 anos na mesma casa sem registro e ficaram sem renda nem ter para onde ir na velhice. É gente que passou por muito trauma, por muita dor”.
Mesmo ciente de que algumas pautas não vão avançar, é preciso ter coragem de pautar o debate, defende a vereadora
Leitora assídua da filósofa e antropóloga Lélia González, uma referência do movimento negro, Alves diz dedicar especial atenção aos pequenos cidadãos paulistanos. “Recebo muitas turmas escolares no meu gabinete, e também visito muitas escolas periféricas. É gratificante ver meninas que se reconhecem em mim porque uso trança, porque sou negra, e sou vereadora”, conta com orgulho.
Para a advogada Amarílis Costa, diretora-executiva da Rede Liberdade, a reeleição de vereadoras negras significa um novo capítulo na história da capital paulista. “É a primeira vez que a população negra consegue olhar para a política com um olhar de continuidade”, celebra. Especialista em crimes raciais, Costa destaca a atuação de Alves no processo que levou à cassação do vereador Camilo Cristófaro, do PSB. “Foi histórico, nunca um vereador eleito havia perdido o mandato por racismo”, diz. Durante uma sessão remota da Câmara, em 2023, o vereador esqueceu o microfone aberto e disse: “Varrendo com água na calçada… é coisa de preto, né?” Naquele momento, alguns colegas tentaram contemporizar, argumentaram que se tratava de uma piada, mas Alves fez questão de interromper a sessão para protestar e ingressou com ações na Justiça. Cristófaro está inelegível até 2032 e foi expulso do partido.
Neste ano, Alves prevê muitos embates na Casa Legislativa. O projeto de Tarcísio de Freitas de mudar a sede do governo paulista do Morumbi para a região dos Campos Elísios vai desencadear um processo de “elitização do Centro”, alerta a vereadora. Por isso, defender a população pobre dessa região está entre as prioridades de seu segundo mandato. “Vou defender as ocupações de moradia, os cortiços, os trabalhadores informais que moram no Centro e serão vítimas dessa gentrificação que está para acontecer.” Nas horas vagas, a vereadora diz fugir de eventos agitados. Prefere passar momentos tranquilos ao lado da esposa, em casa. “Meu hobby é cozinhar, caminhar no parque, ter um tempinho de descanso de qualidade. Toda a população deveria ter direito a isso.” •
Publicado na edição n° 1344 de CartaCapital, em 15 de janeiro de 2025.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Caçadora de racistas’
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