Política
Bolsonaro planta fake news para liberar o garimpo em terras indígenas
O governo utiliza-se da escassez de potássio no mundo, devido à guerra entre Rússia e Ucrânia, para tentar passar mais uma boiada antiambiental


Um levantamento realizado pelo Instituto Socioambiental, com base em dados da Agência Nacional de Mineração, revela que o Brasil tem hoje 4.361 requerimentos para exploração de sais de potássio e fosfato, dos quais apenas 25 deles estão previstos em terras indígenas (TIs).
Especificamente para exploração de potássio, os pedidos que incidem sobre esses territórios representam 1,6%, enquanto os outros mais de 98% estão previstos em outras regiões do País, sobretudo nos estados de Minas Gerais, São Paulo e Sergipe, localidades com maior presença de jazidas do minério. Apesar disso, em mais uma fake news plantada por Jair Bolsonaro, o governo utiliza-se da escassez de potássio no mundo, devido à guerra entre Rússia e Ucrânia, para tentar passar mais uma boiada antiambiental e aprovar, no Congresso Nacional, o PL 191/2020, que regulariza o garimpo ilegal nas TIs.
O projeto tenta regulamentar os artigos 176 e 231 da Constituição de 1988, abrindo uma exceção para a realização de pesquisas e de lavra de recursos minerais e hidrocarbonetos, e para o aproveitamento de recursos hídricos para a geração de energia elétrica em terras indígenas. Há quase dois anos parado na Câmara dos Deputados, o PL 191 voltou à tona depois que Bolsonaro, em uma live no início de março, defendeu a aprovação da matéria como forma de driblar a dificuldade em comprar potássio para a agricultura brasileira, por conta do conflito no Leste Europeu. O potássio, o fosfato e o nitrogênio são os principais produtos presentes nos fertilizantes utilizados pelo agronegócio e, no Brasil, 96% do minério é importado. Mas, vale lembrar, menos de 30% vem da Rússia e da Bielorrússia, países envolvidos na guerra.
“A escassez de potássio existe, mas não é motivo para permitir a mineração em terras indígenas. Estudos de diferentes instituições brasileiras mostraram que menos de 11% de todo o potássio mapeado no País está em terras indígenas”, explica Suzi Huff Theodoro, geóloga, professora da UnB e integrante da Federação Brasileira dos Geólogos. “Não é necessário viabilizar a exploração mineral da substância nesses territórios, porque não existe essa sobreposição que o presidente alega.”
Bolsonaro e sua base no Congresso têm pressa. Menos de uma semana depois da live do presidente, o líder do governo na Câmara, deputado Ricardo Barros, desengavetou o PL 191 e o presidente da Casa, Artur Lyra, não mediu esforços para propor uma tramitação em regime de urgência do projeto, aprovada, no dia 9 de março, por 279 votos a favor e 180 contrários. Detalhe: a manobra aconteceu praticamente na mesma hora em que um grupo de artistas liderado por Caetano Veloso realizou um grande ato público em frente ao Congresso Nacional contra diversos projetos antiambientais que tramitam na Câmara e no Senado, e que reuniu milhares de manifestantes.
Apenas 1,6% dos requerimentos para a exploração de potássio incide sobre territórios indígenas no País
Em regime de urgência, o PL 191 não precisa passar pelas comissões técnicas. Será discutido por um grupo de trabalho, que tem 30 dias para analisar a matéria e encaminhar para votação em plenário. Dos 20 membros do grupo, 13 são governistas e apenas sete da oposição. Um dia após a aprovação da urgência, a Comissão de Direitos Humanos e Minorias da Câmara recebeu um documento do Alto Comissariado das Nações Unidas para os Direitos Humanos, acusando o PL de descumprir as normas e os compromissos internacionais de direitos humanos pactuados pelo Brasil, com graves impactos sobre os povos indígenas. “O parecer da ONU aumenta ainda mais a nossa preocupação com relação a esse projeto que, se aprovado, deverá gerar danos sociais e ambientais irreversíveis. Essa proposta faz parte de um novo projeto de genocídio da população indígena. É urgente que o Congresso ouça esses alertas”, comenta o deputado petista Carlos Veras, presidente da Comissão de Direitos Humanos da Câmara.
Para muitos ambientalistas, advogados e parlamentares, o projeto é ilegal. “A regulamentação em si do aproveitamento mineral e exploração hidráulica em terras indígenas não é inconstitucional. Mas o PL 191 tem uma série de problemas, porque não respeita os caminhos que a Constituição fala, nem do ponto de vista formal nem material”, observa Juliana Batista, advogada do Instituto Socioambiental, citando o parágrafo terceiro do artigo 231 da Constituição, a prever condições específicas para a exploração. A comunidade indígena precisa, por exemplo, ser ouvida e participar da lavra.
Além disso, acrescenta a advogada, o parágrafo sexto do mesmo artigo diz que a regulamentação deve ser encaminhada por lei complementar, não via projeto de lei como proposto, e que a excepcionalidade de o território ser usado por não indígenas só é possível se for de interesse público. “Não existe mineração e exploração hidráulica que não vá utilizar os recursos do solo, dos rios e dos lagos. Tanto que o PL prevê a regulamentação de hidroelétrica, de mineradora, de gasoduto, de exploração de petróleo, construção de hidrovia, ferrovia, estrada, linha de transmissão. Ele regulamenta uma multiplicidade de atividades diferentes, a gente chama o projeto de X-Tudo”, diz Batista, lembrando ainda que o parágrafo sétimo fala que os capítulos da Constituição que regram o garimpo não se aplicam em terras indígenas.
O projeto é tão esdrúxulo que o Instituto Brasileiro de Mineração, entidade que reúne as grandes mineradoras do Brasil, divulgou uma nota, na terça-feira 15, condenando o PL. O presidente da Frente Parlamentar pelo Meio Ambiente na Câmara, Rodrigo Agostinho, do PSB, diz que o objetivo do governo é legalizar o garimpo e reclama da ausência de discussão com transparência. “Se o projeto for aprovado, vai ser um monte de não indígenas na aldeia, os conflitos vão ser intensos, vamos ter abusos, degradação e desmatamento.” Pedro Ivo, da coordenação do Fórum Brasileiro de ONGs e Movimentos Sociais de Desenvolvimento e Meio Ambiente, reforça: “Estão burlando a Constituição e interpretando de forma falaciosa para beneficiar a bandidagem. No governo Bolsonaro, houve aumento de 300% da mineração ilegal e o impacto nas comunidades indígenas é imenso. Tanto na saúde, com contaminação neurológica em crianças, quanto na poluição de mercúrio e no desflorestamento. Tudo isso em uma tríplice aliança: Bolsonaro, congressistas corruptos e o setor criminoso do garimpo”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1200 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE MARÇO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Berrante afinado”
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