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Beco sem saída

A quebra de sigilo telefônico do general Braga Netto e a delação premiada de Mauro Cid encurralam Bolsonaro

Segredos de família. Cid filho (ao fundo) aceitou a delação para proteger Cid pai, amigão de Bolsonaro – Imagem: Marcos Corrêa/PR
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Jovenel Moïse foi assassinado a tiros em casa em 2021. Era, desde 2017, o presidente de um dos países mais miseráveis do mundo, o Haiti. O ano de sua posse coincidira com o fim da missão da ONU concebida para pacificar uma nação marcada pelo infortúnio desde a sua fundação por uma revolução de negros escravizados. Coube ao Brasil chefiar a chamada Minustah do início, em 2004, ao fim. Certos estudos apontam-na como um laboratório para a violência que o Exército adotaria em território nacional ao atuar como polícia em operações de garantia da lei e da ordem, as GLOs. Postura vista em incursões em morros cariocas na época das UPPs e durante a intervenção federal na segurança pública do Rio de Janeiro, por exemplo.

Em 31 de dezembro de 2018, último dia da intervenção no Rio, o chefe da equipe, general Walter Braga Netto, assinou um contrato de 40 milhões de reais para comprar 9 mil coletes à prova de bala. Por decisão do oficial, o negócio foi feito sem licitação. O fornecedor beneficiado era de Miami. A CTU Security LLC recebeu o pagamento em 23 de janeiro de 2019, mas seria obrigada a devolvê-lo oito meses depois, por ordem do Tribunal de Contas da União, órgão auxiliar do Congresso na vigilância do governo. A Corte de contas suspeitou de superfaturamento. Era o primeiro ano do governo Jair Bolsonaro e sobravam militares em cena. Alguns dispostos a agir nas sombras, em troca de recompensa, para tentar impedir o TCU de criar problemas para a empresa de Miami. Foi o caso de outro general, Paulo Roberto Correa Assis, conforme mensagens de celular obtidas pela Polícia Federal.

Negociatas. Braga Netto chefiou uma intervenção suspeita – Imagem: Marcelo Camargo/ABR

Assis queria 300 mil reais pelo ­lobby, 50 mil à vista. O pagamento da parte à vista ocorreu em 18 e 19 setembro de 2019, uma semana antes da suspensão do contrato pelo TCU. Metade para Assis, metade para um coronel do Exército, ­Robson Queiroz da Mota. O dinheiro seria fornecido por um doleiro, ­Márcio Moufarrege, conhecido como “Macaco”, denunciado à Justiça em 2022, juntamente com militares da Aeronáutica, no caso dos 39 quilos de cocaína levados à Espanha em um avião da FAB que compunha a comitiva do então presidente Bolsonaro. Ao pagar Assis e ­Mota, ­Moufarrege agiu em nome de um coronel da Aeronáutica, Gláucio Guerra, representante da CTU Security no País. ­Guerra havia trabalhado em ­Washington, a capital dos Estados Unidos, como chefe da área de logística (ou seja, de compra de equipamentos) da Força Aérea.

Em fevereiro de 2022, último ano de Bolsonaro no poder, a embaixada dos EUA em Brasília enviou um e-mail à PF com uma dica: valia a pena botar lupa na CTU Security. Ao apurar o assassinato de Moïse, a HSI, agência norte-americana de segurança interna, descobrira digitais da empresa. O crime havia sido tramado por um haitiano-americano, Christian ­Sanon, interessado na cadeira do morto. A empresa de Miami, parte do plano, recrutou os matadores. Os sócios esperavam fechar gordos negócios em um eventual governo Sanon. Ao se meterem dois, três anos antes com uma companhia capaz desse tipo de crime, militares brasileiros também teriam interesses ortodoxos?

Hora da verdade. O STF deu início ao julgamento dos golpistas de 8 de Janeiro – Imagem: Marcelo Camargo/ABR

Na terça-feira 12, a PF foi às ruas em busca de pistas e provas de patrocínio de contratação indevida, dispensa ilegal de licitação, corrupção e organização criminosa, por trás daquele contrato assinado por Braga Netto em 2018. Nos preparativos da Operação Perfídia, a juíza ­Caroline Figueiredo, da 7ª Vara Federal Criminal do Rio, quebrou o sigilo comunicacional do general. Má notícia para o militar, potencial candidato do PL a prefeito da capital fluminense em 2024. Para o Exército, exposto em outra obscenidade. E para Bolsonaro, de quem Braga Netto foi ministro e vice na chapa reeleitoral. Um caldo engrossado pela delação do tenente-coronel do Exército Mauro Cesar Barbosa Cid, principal ajudante de ordens de Bolsonaro na Presidência.

Nunca um fardado brasileiro havia topado uma delação, circunstância explicada por provas fartas contra ele, por quatro meses de prisão preventiva e pela enrascada do pai, o general Mauro Cesar ­Lourena Cid, amigo de Bolsonaro desde a academia militar. Cid falou por 14 horas à PF, em três dias diferentes no fim de agosto, antes de a delação ser validada por ­Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal. O acordo foi selado por policiais, não por promotores. Os advogados de Jair e ­Michelle pediram acesso à papelada, Moraes negou. O teor por ora é sigiloso, o que desperta preocupação em Bolsonaro. Seus auxiliares sopram à mídia que estão no escuro, não sabem do que se defender.

Cid é investigado pela PF em várias frentes. No caso da carteira de vacina falsa arranjada para o ex-chefe, motivo de sua prisão preventiva em 3 de maio, revogada por Moraes no dia da homologação da delação (9 de setembro). Pelo comércio de joias presenteadas ao capitão na Presidência. E por conta dos gastos de ­Michelle. À Folha de S.Paulo, Bolsonaro disse que Cid “não participava de nada” e é “decente”. “Ele não vai inventar nada, até porque o que ele falar, vai ter que comprovar. Há uma intenção de nos ligar ao 8 de Janeiro de qualquer forma.” Em viagem à Índia, o presidente Lula apontou na mesma direção. “A cada dia nós vamos tendo a certeza de que havia a perspectiva de golpe e que o ex-presidente estava envolvido nela até os dentes. É isso que vai ficar claro.”

Cid será a fonte que ligará Bolsonaro aos atos golpistas de 8 de janeiro?

Os participantes do quebra-quebra de 8 de janeiro em Brasília começaram a ser julgados pelo Supremo na quarta-feira 13. A Procuradoria-Geral da República acusou 1,3 mil golpistas, quatro entraram na pauta do tribunal: Aécio Pereira e Thiago Mathar, de São Paulo, e Matheus Lázaro e Moacir dos Santos, do Paraná. Pereira havia sido preso no Senado com uma camiseta em defesa do golpe militar. Mathar, no Palácio do Planalto. Lázaro, no Palácio do Buriti, com um celular em que havia a seguinte mensagem à esposa: “Tem que quebrar tudo para o Exército entrar”. Santos chegou a ser solto posteriormente (o único dos quatro). O quarteto era réu por associação criminosa armada, abolição violenta do Estado de Direito, tentativa de golpe de Estado, dano do patrimônio público e grave ameaça. Crimes cujas penas somadas chegam a 30 anos. Moraes votou por condenar Pereira a 17 anos. Nunes Marques, indicado de Bolsonaro, por pena de 2 anos. O julgamento prosseguia quando esta reportagem foi concluída, na quinta-feira 14.

Os 1,3 mil acusados são os executores da tentativa de golpe. Mas e o mentor, o instigador? Aqui entra Bolsonaro. Após perder a eleição em outubro do ano passado, o derrotado recolheu-se por quase um mês no Palácio da Alvorada. Por tudo o que se sabe hoje, é possível enxergar aquele período como de conspiração para reverter o resultado das urnas. Em 18 de novembro, Braga Netto foi ao capitão e, na saída do Alvorada, comentou com fiéis bolsonaristas na porta: “Vocês não percam a fé, tá bom? É só o que eu posso falar para vocês agora”. Dois dias depois, surgiram áudios de um ministro do TCU, Augusto Nardes, no qual citava “um movimento muito forte nas casernas” de “desenlace imprevisível”. No celular de Cid, a PF encontrou documentos que pretendiam dar ares de legalidade a um golpe militar. O que o tenente-coronel tem a dizer a respeito da conspiração?

No acordo de delação, Cid, de 44 anos, abre mão do silêncio, aceita responder tudo o que lhe for perguntado, além de entregar nomes, pistas e evidências. Ao ser solto por Moraes, teve o passaporte e o porte de armas cancelados, foi obrigado a comparecer semanalmente perante um juiz e proibido de usar as redes sociais e de falar com qualquer pessoa, exceto com o pai general, a esposa (Gabriela) e as três filhas (todas menores de idade). O tenente-coronel foi ainda afastado por Moraes das funções no Exército, embora tenha mantido o salário de 27 mil reais. Recorde-se: sua indicação ao posto de ajudante de ordens partiu do comandante do Exército em novembro de 2018, o hoje general da reserva Eduardo Villas Bôas.

Conexão. O assassinato de Moïse no Haiti leva à intervenção no Rio – Imagem: Leonora Bauman/ONU

De que maneira Cid contribuirá para as investigações? A PF não fazia questão de uma delação, por tudo o que havia descoberto por conta própria e pela desconfiança de que Bolsonaro dificilmente dava ordens claras, do tipo “batom na cueca”. Para Eugênio Aragão, ex-ministro da Justiça, subprocurador-geral aposentado e advogado criminalista, é preciso olhar debaixo da superfície, ou seja, para aquilo que ainda não está tão visível. Aragão arrisca uma hipótese: movimentações financeiras e imobiliárias do ex-presidente nos EUA. Cid, recorde-se, era uma espécie de tesoureiro do capitão na Presidência. Cabia a ele pagar despesas de Michelle, com dinheiro supostamente oriundo da conta pessoal do chefe. Cidão, o pai general, dirigiu o escritório da Apex, a agência de exportação, por quatro anos em Miami e colocou sua conta bancária a serviço do amigo.

A PF firmou uma cooperação com o FBI, congênere norte-americana, na busca por informações financeiras das famílias Cid e Bolsonaro. Curioso: o ex-presidente e muitos de seus colaboradores militares sempre viram o Tio Sam como pátria inspiradora, agora estão cada vez mais enrolados graças aos EUA. O caso de Braga Netto e dos coletes à prova de bala, ressalte-se, foi abastecido por um órgão dos EUA, a HSI.

Pela Lei 12.850, de 2013, que trata de organizações criminosas e delações, um alcaguete pode ser beneficiado ou com perdão judicial de até dois terços da pena ou com sua exclusão de uma denúncia do Ministério Público. O procurador-geral da República, Augusto Aras, declarou-se contra a delação. Está no cargo por indicação de Bolsonaro e seu mandato termina no dia 26. O substituto será nomeado por Lula. Segundo um auxiliar presidencial, o petista divide-se entre dois nomes: Antônio Carlos Bigonha, subprocurador-geral de perfil progressista e apoiado por parte do PT, e Paulo Gustavo Gonet Branco, conservador próximo a Moraes e a outro juiz do Supremo, Gilmar Mendes, de quem foi sócio no passado. O primeiro talvez tenha dificuldade para controlar uma corporação bagunçada por disputas internas e pelo lavajatismo. O segundo talvez deixe Lula na mão de Mendes e Moraes. O cálculo do presidente será decisivo no destino de Bolsonaro. •

Publicado na edição n° 1277 de CartaCapital, em 20 de setembro de 2023.

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