Justiça

cadastre-se e leia

Banho de sangue

Relatório aponta casos de tortura e indícios de execução sumária em operação da PM na Baixada Santista

Senhores do caos. O governador Tarcísio de Freitas confiou a pasta da Segurança Pública a Guilherme Derrite, oficial da reserva da PM e ex-comandante da Rota – Imagem: Mastrangelo Reino/GOVSP e Francisco Cepeda/GOVSP
Apoie Siga-nos no

Um relatório elaborado pela Ouvidoria das Polícias de São Paulo e por organizações da sociedade civil compilou denúncias de abordagens violentas, invasões de domicílios, torturas e indícios de execução nas recentes incursões policiais em comunidades pobres da Baixada Santista. Entre os episódios relatados por testemunhas figura o caso de um rapaz que chegou a ser submetido a sessões de sufocamento com saco na cabeça, para passar informações sobre suspeitos. Ele nem sequer tinha anotações criminais. Há ainda relatos de que policiais teriam empilhado corpos de vítimas no chão, formando uma cruz, e depois fizeram registros fotográficos “para postagem nas redes sociais”. O documento foi entregue, na segunda-feira 26, a Mário Sarrubbo, procurador-geral de Justiça do estado e futuro secretário Nacional de Segurança Pública do governo Lula.

“O clima é de terror, de insegurança generalizada. Está todo mundo com medo”, resume Samira Bueno, secretária-executiva do Fórum Brasileiro de Segurança Pública, uma das entidades que participaram do trabalho de campo para a elaboração do relatório. Em julho de 2023, a Polícia Militar deflagrou a Operação Escudo, que durou 40 dias e resultou na morte de 28 suspeitos nos municípios da Baixada Santista. A ofensiva ocorreu em retaliação à morte um soldado da Rota, a tropa de elite da corporação, abatido a tiros durante um patrulhamento no Guarujá. Aplacado o desejo de vingança, a matança cessou por algum tempo. Após o assassinato de outro soldado da Rota em Santos, no início de fevereiro, a PM aproveitou a tradicional Operação Verão para cuidar do acerto de contas. Até a conclusão desta reportagem, outros 38 civis foram abatidos em supostos confrontos com policiais. “São quase 40 mortos em menos de um mês, nós não tínhamos operações dessa natureza no estado. Nossa maior preocupação agora é que esta seja a nova política de segurança pública daqui para a frente, a exemplo do que ocorreu no Rio de Janeiro, com resultados desastrosos.”

O documento foi entregue a Mário Sarrubbo, chefe do Ministério Público paulista

Considerado o mais bolsonarista dos secretários do governador Tarcísio de Freitas, o titular da pasta de Segurança Pública, Guilherme Derrite é um capitão da reserva da PM de São Paulo que chegou a comandar o batalhão da Rota de 2013 a 2015. Adepto da filosofia do “bandido bom é bandido morto”, ele fez uma drástica mudança no comando da corporação em 21 de fevereiro. Dos 63 coronéis em postos de chefia, 34 foram trocados, privilegiando oficiais egressos da Rota. “Mais da metade da cúpula da PM foi trocada, é uma situação inédita na história da instituição. Vemos uma bolsonarização do staff da corporação, patrocinada pelo secretário”, lamenta Benedito Mariano, ex-ouvidor das polícias paulistas. “Está muito claro que o Derrite move as peças no tabuleiro para ter, cada vez mais próximo dele, coronéis e outros oficiais que apoiem a sua política”, acrescenta Bueno.

A movimentação do secretário também acendeu um sinal de alerta em pessoas próximas do governo Lula. “Derrite derrubou todo o comando da PM e instalou coronéis da truculenta Rota nas chefias, o que foi criticado por criminalistas e até nos editoriais da imprensa paulista. Na noite de domingo, o secretário decidiu na marra que 750 mil pessoas teriam ido ao ato antidemocrático da paulista, cálculo que a PM havia deixado de fazer há tempos, pelos óbvios riscos de manipulação. E na madrugada o perfil oficial da Polícia Civil repostou ataques a Lula e ao governo federal. Instituições de segurança na mão de bolsonaristas são um risco para a democracia”, escreveu a ­deputada e ­presidente do PT, Gleisi Hoffmann, na rede social X.

Retrocesso. O governo paulista sabota o programa de câmeras corporais para PMs – Imagem: Rovena Rosa/ABR

As mudanças na cúpula da PM provocaram descontentamento em parcela expressiva da tropa, ciente de que a matança desenfreada de suspeitos pode provocar uma reação do crime organizado, elevando as mortes também de policiais. Muitos dos coronéis afastados tentavam conter a letalidade na operação em curso na Baixada Santista. Entre eles figura o coronel José Alexander de Albuquerque Freixo, até então o número 2 da corporação, defensor do uso de câmeras nas fardas dos PMs.

Desde a nomeação do novo secretário de Segurança Pública, oficiais de perfil moderado colocaram as barbas de molho, relata um coronel da reserva da PM, que pediu à reportagem para não ser identificado. “A chegada do Derrite foi um recado claro para a tropa. Em palestras e cursos de treinamento, ele costumava dizer que tenente com quatro anos de polícia e sem nenhuma morte no currículo não merece assumir posição de comando”, comenta. Segundo esse interlocutor, a interrupção do programa de câmeras corporais foi o primeiro episódio de atrito com parte do coronelato, que há mais de dez anos defendia o uso do equipamento como forma de reduzir a letalidade policial e, por consequência, as baixas de policiais em serviço. Importante ressaltar que foi a própria cúpula da PM paulista que, de forma pioneira, resolveu testar o sistema consagrado em nações desenvolvidas.

“Não posso dizer que todos os coronéis pensavam dessa forma, mas o apoio às câmeras era majoritário na cúpula da PM”, afirma o oficial da reserva. Segundo ele, a violência das recentes operações é tão alta que policiais de baixa patente têm se recusado a se deslocar para a Baixada Santista. “Além disso, ao concentrar um grande efetivo no litoral, começa a falta de coordenação plena dessas tropas. É o terreno perfeito para arbitrariedades.”

O secretário Derrite trocou 34 dos 63 coronéis da cúpula da PM, privilegiando oficiais da violenta Rota, a tropa de elite da corporação

Deputada estadual da Bancada Feminista do PSOL, Paula Nunes esteve presente em uma das diligências de organizações da sociedade civil na Baixada Santista e concorda com a avaliação do coronel da reserva. “A troca do comando da PM é uma demonstração cabal de que o governador Tarcísio de Freitas lida com a segurança pública no modo bolsonarista, com uma estratégia de enfrentamento, destruição e morte.” Já a advogada Amarílis Costa, diretora-executiva da Rede Liberdade, alerta que política de extermínio possui um claro ­viés socioeconômico. “Ao dar carta branca para a PM agir como bem entender e municiar as tropas com equipamentos de artilharia pesada, é evidente que haverá derramamento de sangue, principalmente de jovens negros, as principais vítimas da violência policial.”

Amarílis ressalta, porém, que a crise não atinge somente os civis, mas também os policiais que atuam na ponta. “Os agentes que estão morrendo ocupam os postos mais baixos da hierarquia. São os que recebem os menores salários e estão expostos aos maiores riscos.” Já Carolina Ricardo, diretora-executiva do Instituto Sou da Paz, demonstra preocupação com o uso político da PM. “O policiamento cotidiano deveria ter o cidadão como alguém a ser protegido, não combatido. Essa filosofia está sendo abandonada em troca de operações violentas e midiáticas, que gera visibilidade para o secretário.”

Presente na escuta às vítimas, o advogado Flávio Roberto Campos, integrante da Comissão de Direitos Humanos da OAB paulista, cobra uma investigação rigorosa da atuação policial na Baixada Santista. “Entrei no quarto de um jovem de 22 anos que foi assassinado, e ficou muito claro para mim que ali não havia acontecido uma troca de tiros. As pessoas estão com muito medo de falar o que de fato está acontecendo, porque a polícia continua lá no território, aterrorizando. Ao mesmo tempo, elas sentem necessidade de denunciar, mas não sabem se serão acolhidas pela Justiça.”

Perícia. Samira Bueno denuncia a falta de autonomia dos médicos-legistas em São Paulo – Imagem: Redes sociais

Samira Bueno denuncia ainda a falta de autonomia dos médicos-legistas. “Pedimos uma audiência com o superintendente da Polícia Técnico-Científica, porque recebemos fotografias de perícias feitas em condições adversas, com diversos policiais em volta durante a necropsia”, comenta. “Vamos cobrar uma resposta sobre isso, porque esses profissionais precisam ter autonomia para trabalhar. Os laudos que vêm sendo divulgados têm deixado muitas dúvidas. O Estado precisa garantir investigações isentas, por isso estamos exigindo maior atuação do Ministério Público.”

Diante do cenário, o deputado estadual Carlos Giannazzi, do PSOL, convocou Derrite para prestar esclarecimentos na Assembleia Legislativa. “Precisamos apurar todas essas denúncias, e por isso queremos questionar o secretário sobre o que está acontecendo.” O requerimento para a audiência foi protocolado na segunda-feira 26. Procurado pela reportagem, o secretário inicialmente se dispôs a falar com CartaCapital, mas pouco depois orientou sua assessoria de imprensa a declinar da entrevista. Em recentes declarações públicas, ele confirmou não haver previsão para o fim das operações. •

Publicado na edição n° 1300 de CartaCapital, em 06 de março de 2024.

Leia essa matéria gratuitamente

Tenha acesso a conteúdos exclusivos, faça parte da newsletter gratuita de CartaCapital, salve suas matérias e artigos favoritos para ler quando quiser e leia esta matéria na integra. Cadastre-se!

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome

Os Brasis divididos pelo bolsonarismo vivem, pensam e se informam em universos paralelos. A vitória de Lula nos dá, finalmente, perspectivas de retomada da vida em um país minimamente normal. Essa reconstrução, porém, será difícil e demorada. E seu apoio, leitor, é ainda mais fundamental.

Portanto, se você é daqueles brasileiros que ainda valorizam e acreditam no bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando. Contribua com o quanto puder.

Quero apoiar

Leia também

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo