Política
Bandeirantes em ação
Sob a proteção de Bolsonaro, garimpeiros, madeireiros e grileiros espalham o terror nas comunidades indígenas e correm contra o tempo para se apossar de suas terras


Estupros, assassinatos e ameaças de morte tornaram-se corriqueiros nos territórios indígenas, alvo de invasores que adentram nas aldeias sem que nada, ou quase nada, seja feito pelo Poder Público. Em meio ao desolador cenário, a violência praticada contra os Yanomâmi, em Roraima, chama atenção. No momento em que a etnia deveria estar celebrando os 30 anos da demarcação de suas terras, completados em 25 de maio, o sentimento no território é de tristeza, revolta e muita insegurança. A comunidade ainda está aterrorizada com o estupro e assassinato de uma adolescente indígena no fim de abril. Lamentavelmente, não é o primeiro episódio. Muitas jovens da tribo foram violentadas e várias delas chegaram a engravidar de seus algozes.
“Os garimpeiros chegam bêbados, atirando. Levam as adolescentes para os acampamentos e lá as estupram. Eles dizem que vão atirar nos pais e maridos que tentam proteger suas filhas e mulheres. Por isso, tem poucos homens que nos defendem, eles também têm medo”, relata a Yanomâmi W.A.K., mãe de três filhos, dois deles frutos de estupros. “É difícil falar sobre isso, é muito sofrimento que a gente passa.” A denúncia é confirmada por Júnior Yanomâmi, presidente do Conselho Distrital de Saúde dos Yanomâmi. “Contei por alto, tem pelo menos 18 bebês filhos de garimpeiros e as mães são menores de idade. Muitas não falam português e eles se aproveitam disso. Não sabem nem o nome do pai, porque vários homens as violentaram.”
ALVO DE CRIMINOSOS E ESTUPRADORES, CERCA DE 30 MIL YANOMÂMI CONVIVEM COM 23 MIL INVASORES
De acordo com Júnior, o medo que paira sobre a comunidade motivou os indígenas a omitirem das autoridades informações sobre o estupro e a morte da adolescente em abril, bem como do desaparecimento de uma criança que teria sido jogada no rio. Por falta de testemunhas, a Polícia Federal alegou não haver indícios suficientes para associar os crimes ao garimpo ilegal. Depois desses episódios, a aldeia foi abandonada e queimada, juntamente com o corpo da adolescente. Para Júnior, os 25 Yanomâmi que abandonaram o local fizerem isso sob ameaça. “Não abandonamos a aldeia se não tiver algum risco. Mesmo quando temos risco muito grande, abandonamos, mas não queimamos.”
Com uma população de 30 mil indígenas, os Yanomâmi são obrigados a dividir seu território com quase o mesmo número de garimpeiros, cerca de 23 mil, ávidos pelo ouro e cassiterita presentes na região, minerais altamente lucrativos. Segundo o relatório Yanomâmi sob Ataque, publicado em abril pela Hutukara Associação Yanomâmi e pela Associação Wanasseduume Ye’kwana, somente no primeiro semestre de 2019 o estado de Roraima exportou 48,7 milhões de reais em ouro para a Índia. O documento mostra que, entre 2016 e 2020, o garimpo nas terras Yanomâmi cresceu 3.350%. Em outubro de 2018, a área destruída pelos invasores somava em torno de 1,2 mil hectares, saltando para 3,2 mil hectares em dezembro do ano passado. O pico das invasões ocorreu no segundo semestre de 2020, no auge da pandemia de Covid-19.
Historicamente, o Mato Grosso do Sul lidera o ranking de homicídios de indígenas – Imagem: Christian Braga/Farpa/CIDH
O relatório mostra ainda que, em 2021, a destruição no território cresceu 46% em relação ao ano anterior, um incremento de mil hectares, possivelmente a maior taxa anual desde a demarcação da TI, em 1992. O assédio acontece sob a égide de um governo federal que, até certo ponto, legitima as invasões e de um Congresso Nacional empenhado em desengavetar e aprovar uma série de projetos que ameaçam a sobrevivência dos povos originários. O que se vê é um claro desrespeito aos artigos 231 e 232 da Constituição Federal, os quais garantem aos indígenas direitos sobre as terras que tradicionalmente ocupam.
“Quando estávamos isolados dentro da floresta por causa do Coronavírus, os garimpeiros aproveitaram para invadir. Quando percebemos, o processo estava bem avançado. Até nas comunidades mais isoladas, sem contato, onde não existia garimpo, eles chegaram. Cinco ou seis agentes do Ibama não conseguem combater. Os garimpeiros não vêm com pá ou enxada não. Trazem armamento pesado, pistolas, fuzis, submetralhadoras, todo tipo de arma”, destaca Júnior. Com dimensão territorial de mais de 96 mil quilômetros quadrados – o dobro do tamanho da Suíça – e 377 comunidades diferentes, os Yanomâmi ainda enfrentam sérios problemas de saúde ocasionados pela presença do garimpo ilegal, diante do impacto provocado ao meio ambiente. O adoecimento por malária, por exemplo, aumentou consideravelmente, chegando, inclusive, em áreas urbanas. Há também relatos de contaminação da água por mercúrio, provocando de doenças na pele até má-formação em bebês.
No Pará, os Parakanã são vítimas de uma campanha de ódio após um crime na TI
Mesmo sendo o território Yanomâmi o maior em número de invasores entre as TIs, Sydney Possuelo, ex-presidente da Funai responsável pela demarcação do território Yanomâmi, acredita ser possível retirar o garimpo de lá. Ele lembra que, à época de sua gestão, havia 42 mil garimpeiros no local, todos retirados num período de três meses, graças a uma forte atuação da Funai e da Polícia Federal. “É possível, sim, o Estado promover a retirada dos invasores”, enfatiza. “Só não se retira agora porque essa é a política atual do governo, de deixá-los atuar livremente, arrasando com a terra e promovendo a destruição da floresta, essa grande selva brasileira que nos enche de orgulho.”
“Os povos indígenas em nenhum momento da história foram prioridade. Mas, no governo Bolsonaro, a situação ganhou contornos dramáticos”, acrescenta Beto Marubo, membro da Coordenação Movimento Indígena do Vale do Javari, etnia do oeste do Amazonas. “Os 114 povos isolados dependem exclusivamente da proteção da Funai, mas o órgão tornou-se uma anomalia que traz medo. Hoje, a principal atividade da Funai é a entrega de cestas básicas e fomentar leis e pareceres técnicos que relativizam os direitos dos indígenas às suas terras. Uma Funai contra os índios e contra o seu estatuto.” A Fundação foi procurada pela reportagem, mas não retornou aos insistentes contatos.
BASTA RECUPERAR OS 60 MILHÕES DE HECTARES DE SOLO DEGRADADO PARA GARANTIR AO AGRONEGÓCIO UM NOVO SALTO
Os Yanomâmi não são os únicos prejudicados. O povo Munduruku, que vive no Amazonas, tem sido alvo de intimidação e constantes ameaças de morte. Em Roraima, a adolescente Janielly Grigório, de 15 anos, do povo Wapichana, foi assassinada no fim de abril, após ser amarrada em uma árvore no município do Cantá. O corpo da jovem só foi encontrado em 10 de maio. No Nordeste, poucas terras indígenas estão demarcadas e, mesmo estas, estão sendo invadidas, enquanto as não demarcadas são alvo de constantes conflitos, devido à ambição do agronegócio e do setor turístico. “Bolsonaro criou uma instabilidade jurídica, abriu as fronteiras em todas as terras indígenas. Não tem uma área demarcada que não sofra pressão para expulsar os povos originários”, alerta Felipe Milanez, professor da Universidade Federal do Recôncavo da Bahia.
No Pará, a situação é de total insegurança. Desde o domingo 15, a comunidade Apyterewa, do povo Parakanã, está sendo intimidada por grileiros, que ameaçam invadir as aldeias, instaurando um clima de terror e medo entre os indígenas. No outro extremo, também no território Parakanã, os indígenas estão sitiados, proibidos de circular no município de Novo Repartimento, sob ameaças de morte. A revolta de populares da região deve-se ao assassinato de três caçadores, cujos corpos foram encontrados na TI, embora não exista a comprovação de que o crime tenha sido cometido pelos indígenas.
Fontes: Funai, IBGE e Conselho Missionário Indigenista (Cimi)
Da mesma forma, os Parakanã são vítimas de uma campanha de ódio nas redes sociais e em outdoors espalhados pela cidade. O antropólogo Antônio Carlos Magalhães, que conviveu por quase 20 anos com o povo Parakanã, objeto de muitas de suas pesquisas no Museu Emílio Goeldi, em Belém, chama atenção para os interesses dos invasores na região. “A Terra Indígena Parakanã talvez seja a única grande mancha verde entre Altamira e Marabá, e, consequentemente, chama atenção de todos aqueles que têm interesse de explorar, seja para garimpo, seja para loteamento, ou ainda para a criação de gado, mineração e extração de madeira.”
Um estudo publicado no ano passado pelo Conselho Missionário Indigenista revela que 182 indígenas foram assassinados em 2020. Os estados que registraram o maior número de mortes violentas foram Roraima, Amazonas e Mato Grosso do Sul. Esse último lidera o ranking de mortes há tempos. Entre 2003 e 2015, dos 891 homicídios, 47% ocorreram em Mato Grosso do Sul, estado onde vivem os quase 55 mil guaranis das etnias Nhandeva e Kaiowá, confinados em cerca de 30 áreas isoladas que totalizam menos de 50 mil hectares. A maior parte dessa população vive em regiões superlotadas, demarcadas pelo antigo Serviço de Proteção ao Índio ainda nos anos 1920, sem condições mínimas para subsistir com o seu modo de vida tradicional. Os indígenas são constantemente ameaçados por pistoleiros e milicianos, a serviço de ruralistas que relutam em aceitar qualquer nova demarcação no estado. Desesperados e sem assistência do Estado, muitos cometem suicídio ou se entregam ao alcoolismo.
Bolsonaro quer liberar a mineração nas TIs. Possuelo diz ser possível retirar os invasores, basta ter vontade política. Relator do marco temporal, Fachin é contra a tese dos ruralistas – Imagem: Clauber Cléber Caetano/PR, Dida Sampaio/Estadão Conteúdo e TSE
Sobre os conflitos nas terras indígenas, o documento do Cimi revela que, em 2020, houve invasões em pelo menos 201 Terras Indígenas, atingindo 145 etnias. Os números apontam aumento de 13 casos na comparação com o primeiro ano do governo Bolsonaro e de 141% em relação a 2018, quando foram registradas 109 invasões. Segundo o relatório, 2020 foi o quinto aumento consecutivo de invasões na TIs, praticadas, em geral, por madeireiros, garimpeiros, caçadores e pescadores ilegais, fazendeiros e grileiros. “Invadem as Terras Indígenas para se apropriar ilegalmente da madeira, devastar rios inteiros em busca de ouro e outros minérios, além de desmatar e queimar largas áreas para a abertura de pastagens. Em muitos casos, os invasores dividem a terra em ‘lotes’ que são comercializados ilegalmente, inclusive em terras indígenas habitadas por povos isolados”, diz trecho do estudo.
O argumento de que o Brasil reservou terras demais para os indígenas, o que supostamente limita o avanço do agronegócio, não se sustenta, embora o presidente Bolsonaro e a bancada ruralista no Congresso aleguem ser necessário liberar atividades econômicas nas TIs. De acordo com dados da Embrapa, a área plantada de grãos cresceu 1,6 vez de 1997 a 2017, mas a produtividade triplicou no mesmo período. Além disso, ainda existem entre 60 milhões e 100 milhões de hectares de solos em diferentes níveis de degradação e mais da metade das pastagens brasileiras são mal aproveitadas.
“Dos 32 milhões de hectares que adotam o Plantio Direto no Brasil, um sistema conservacionista de cultivo agrícola, estima-se que em apenas 2,7 milhões de hectares são seguidos corretamente os preceitos preconizados pela pesquisa agropecuária. Como consequência, surgem problemas como compactação do solo, erosão hídrica, quebra da estabilidade da produtividade e aumento do custo de produção”, aponta a Embrapa. Ou seja, bastaria recuperar o solo degradado para a agropecuária ter novo salto de produtividade.
O DESMATAMENTO EM TERRAS INDÍGENAS FOI DE APENAS 1% NOS ÚLTIMOS 30 ANOS
Não é apenas o setor agropecuário que precisa qualificar sua atuação para deixar as terras indígenas em paz. A mineração também. Com a desculpa da guerra na Ucrânia, Bolsonaro, com o apoio do presidente da Câmara, Arthur Lira, desenterrou o Projeto de Lei 191, de 2020, que regulamenta a mineração em Terras Indígenas, liberando o garimpo para extração de insumos para fertilizantes, mais especificamente o potássio. Os pesquisadores Raoni Rajão, Bruno Manzolli, Britaldo Soares-Filho e Roberto Galéry jogam por terra esse argumento no artigo intitulado “Fertilizantes no Brasil: Da Tragédia Anunciada às Falsas Soluções”. Segundo alertam, “a maioria absoluta das reservas de agrominerais encontra-se fora de reservas indígenas”, fazendo com que o projeto de lei não resolva a atual crise, além de trazer novos problemas socioambientais. O dado é confirmado pela Agência Nacional de Mineração. O PL 191 tramita na Câmara em regime de urgência, a demonstrar que o governo Bolsonaro, talvez em despedida, tem pressa para passar a boiada.
De acordo com dados divulgados pelo Instituto Socioambiental (ISA), os indígenas ocupam 13% do território brasileiro, pouco mais da metade da ocupação latifundiária, que passa dos 20%. Em Mato Grosso do Sul, por exemplo, 86% do território está nas mãos de proprietários rurais, enquanto os indígenas têm apenas 2,4% de terras demarcadas. O ISA ainda cita o estado de Goiás, onde os povos originários ocupam 0,1% dos mais de 340 mil quilômetros quadrados do território estadual.
“É uma falácia a narrativa de que é preciso invadir as Terras Indígenas para justificar as lesões ocasionadas por um desenvolvimento que é para atender apenas um grupo econômico. Os povos indígenas vêm pagando muito caro por um desenvolvimento que não está dando o retorno que eles almejavam. Belo Monte está aí para mostrar. O impacto ambiental não compensou a energia gerada”, critica Dinamam Tuxá, membro da Coordenação Executiva da Articulação dos Povos Indígenas (Apib). Para Elisa Urbano, liderança Pankararu e membro da Articulação dos Povos e Organizações Indígenas do Nordeste, Minas Gerais e Espírito Santo (Apoinme), a não demarcação das terras indígenas deixa os territórios desprotegidos, livres para a ação dos criminosos. “Esse conjunto de invasões vem em nome de uma ganância chamada de ‘progresso’ e legitimada pelo Poder Público”, afirma, mencionando a construção de hidrelétricas e grandes empreendimentos turísticos no Nordeste, o que gera violência contra os indígenas.
Fontes: IBGE e Funai
Na segunda 15, Bolsonaro voltou a criticar o Supremo Tribunal Federal. Dessa vez, o ataque foi por conta da votação do marco temporal, prevista para ser retomada no dia 23 de junho, julgamento que vai definir o futuro dos povos originários. A proposta prevê que apenas as etnias que ocupavam suas terras no momento da promulgação da Constituição, em 5 de outubro de 1988, têm o direito a reivindicar a demarcação. O relator do projeto no STF, ministro Edson Fachin, apresentou parecer contrário à medida. O ministro indicado por Bolsonaro para a Corte, Kássio Nunes Marques, votou a favor do marco, em sessão realizada em setembro de 2021, empatando o placar da votação. Na ocasião, Alexandre de Moraes pediu vistas do processo e a sessão foi suspensa.
“Não estamos aqui a partir de 1988, estamos desde sempre. O marco temporal representa a legitimação da violência contra os nossos povos de Norte a Sul deste país”, observa Urbano. “A tramitação de projetos como este legitima aqueles que atuam de forma ilegal, com o aval do Estado brasileiro”, acrescenta Tuxá. “Os indígenas não vão desistir da luta. A questão é quanto que os brancos estão dispostos a sacrificar os índios ou aceitar um mundo mais civilizado. É isso o que está em jogo”, conclui Milanez.
Preservar as terras indígenas também é preservar o meio ambiente, e isso reflete positivamente na vida de todos. Numerosos estudos comprovam que a degradação nesses territórios é mínima. Segundo um levantamento publicado pelo MapBiomas em abril, o desmatamento em TIs foi de apenas 1% nos últimos 30 anos, ao passo que a perda de vegetação nativa em áreas privadas passou de 20%. Beto Marubo se diz preocupado com o que pode acontecer, caso a violência contra os indígenas persista: “Não vai demorar muito para haver revoltas dos povos indígenas contra os invasores. Até quando os Yanomâmi vão aguentar ver as suas crianças sendo sugadas por dragas ou estupradas por garimpeiros? O Brasil terá de prestar contas à comunidade internacional”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1209 DE CARTACAPITAL, EM 25 DE MAIO DE 2022.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Bandeirantes em ação”
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