Economia
Até a última gota
A mídia e o mercado transformam o sólido resultado financeiro da Petrobras em uma crise política


A decisão do governo Lula de suspender a distribuição de dividendos extraordinários de 2023 aos acionistas da Petrobras, no valor de 43 bilhões de reais, anunciada na quinta-feira 7, garante uma folga financeira para a empresa realizar os investimentos do plano de negócios, apontam economistas. Mais importante: a medida é um marco para uma eventual virada de rumo da empresa, que tem a chance de abandonar aos poucos a condição de caixa automático exclusivo de detentores de papéis e voltar a ser uma companhia produtiva, empenhada na concretização do interesse público.
A diretoria da Petrobras chegou a propor o pagamento de metade dos dividendos extraordinários e a destinação do restante para investimentos. Os representantes do governo no Conselho de Administração votaram contra a proposta, que acabou rejeitada. Foram pagos apenas os dividendos obrigatórios, no valor de 14 bilhões de reais. O presidente da companhia, Jean Paul Prates, divergiu da orientação do governo e se absteve na votação, decisão mal recebida no Palácio do Planalto. Chegou-se a especular no noticiário uma possível demissão de Prates, que tinha na agenda uma reunião de rotina com Lula na segunda-feira 11, encontro que, no fim das contas, serviu para colocar os pingos nos is.
A suspensão da distribuição de dividendos extraordinários garante uma folga financeira à companhia
No dia seguinte ao anúncio da retenção dos dividendos extraordinários, o mundo caiu, ao menos nas páginas dos sites de jornais e tevês. Manchetes alardearam uma redução do lucro da Petrobras de 33% no ano passado, mas esconderam o fato de o resultado estar em linha com a queda internacional do preço do barril de petróleo e ter sido até melhor do que aquele das petroleiras estrangeiras maiores que a estatal brasileira. O início da mudança parece promissor, mas, além de redirecionar os dividendos extraordinários e reforçar a posição do governo, majoritário no Conselho de Administração, com um representante do Ministério da Fazenda indicado por Fernando Haddad, será necessário enfrentar o bunker de representantes do mercado financeiro, do bolsonarismo e do lavajatismo no interior da empresa, um assunto que será retomado abaixo.
O alarde da mídia criou a oportunidade perfeita para aquilo que parecia impossível, transformar o segundo maior lucro da história da Petrobras, sem vendas de ativos estratégicos, em uma pauta negativa, em uma “crise política” – o que sempre abre uma possibilidade de ganhos extras no mercado financeiro. “Nós estamos apresentando o segundo maior resultado da história da Petrobras, um lucro líquido de 124,6 bilhões de reais. Com um detalhe, sem vender refinaria, sem vender gasoduto e sem vender ativos estratégicos. É o maior lucro das empresas brasileiras abertas. É o terceiro maior de empresas globais de petróleo”, esclareceu Prates. Segundo o economista Pedro Faria, funcionário da estatal, os lucros no ano passado da Chevron caíram 40%, da BP, 37%, da ExxonMobil, 35%, da Shell, 30% e da Petrobras, 33,8%. “A empresa brasileira teve o segundo maior lucro da história sem vender ativos. E guardando recursos para investir. Ganha o acionista de longo prazo: o povo brasileiro. Perde quem queria desmontar a empresa”, afirma Faria.
O ministro Silveira vai indicar um nome da Fazenda para o conselho – Imagem: Arquivo/MME
Na crise inventada e insuflada nas páginas econômicas, deixou-se de lado o fato de que o investimento no aumento do refino, crucial para a segurança energética do País, possibilitou a redução da importação de derivados no primeiro ano do atual governo, um negócio de dinheiro fácil para o setor privado, na casa dos 9 bilhões de dólares. Desconsiderou-se ainda o investimento no aumento da produção de fertilizantes, crucial para a agricultura não ficar vulnerável a conflitos externos e pandemias, e na produção de energia renovável, decisiva para garantir a neoindustrialização. A ênfase de jornais e tevês recaiu sobre a perda do valor de mercado da companhia a partir do imbróglio dos dividendos extraordinários. Cabe lembrar, como anotou a presidente do PT, a deputada federal Gleisi Hoffmann, que a perda de 55 milhões de reais do valor de mercado representa 25% dos mais de 200 bilhões de valorização da companhia nos últimos 12 meses. A ação ordinária, que na segunda-feira 11 fechou a 35,5 reais, valia 24,19 um ano atrás. Às 11 horas da quarta-feira 13, a cotação estava em 36,94 reais, com tendência de alta.
As críticas à Petrobras se intensificaram na segunda-feira 11, quando o presidente Lula reuniu os ministros da Fazenda, Fernando Haddad, de Minas e Energia, Alexandre Silveira, e da Casa Civil, Rui Costa, além do presidente da Petrobras, Jean Paul Prates, e da diretoria da empresa para pôr fim à confusão. O saldo do encontro é relevante. Ficou claro que, de agora em diante, investimentos na produção de petróleo e gás e na transição energética terão prioridade sobre a distribuição dos lucros entre os acionistas.
A partir de agora, os investimentos em petróleo e gás e na transição energética terão prioridade sobre a distribuição de dividendos
Talvez a proposta de Prates de distribuir 50% dos dividendos extraordinários não tenha sido tão ruim, pondera o economista José Augusto Gaspar Ruas, professor da Facamp. “Eu acho que essa questão da destinação dos dividendos extraordinários gerou uma fumaça desnecessária. A possibilidade real de esses dividendos virarem investimentos é baixa. A retenção entrará para um caixa cuja função primordial é distribuir dividendos em outro momento. Eles podem até entrar como incorporação no capital social, mas é a situação menos provável”, aponta. A proposta simultaneamente geraria um caixa adicional ao Tesouro, que terá de fazer um aperto na execução do orçamento. O governo tem liberado recursos fragmentados e isso terá um impacto muito grande no PIB deste ano. Distribuir parte desses dividendos extraordinários não seria de todo danoso, pois, no fundo, não se gerariam muitos investimentos a partir desses recursos. Além de evitar uma turbulência desnecessária, com a queda de 10% do valor de mercado da empresa. Tratou-se, contudo, de uma sinalização política, no sentido de determinar o fim da farra dos dividendos, sublinha Ruas. Agora há uma convergência de todos os integrantes do Conselho indicados pelo governo.
Na expectativa de que a divisão dos dividendos extraordinários entre investimentos e acionistas se confirme, como queria Prates e talvez venha a se concretizar, inclusive segundo fontes do governo, na terça-feira 12 as ações da Petrobras subiram 3%. No mesmo dia, Rui Costa disse que o governo iniciou um remanejamento no Conselho de Administração da petroleira, também planejado em outras estatais. O ministro referia-se à indicação, por Silveira, de um representante do Ministério da Fazenda no Conselho da companhia, no cumprimento de uma decisão de Lula. Haddad deve indicar o secretário-executivo-adjunto da pasta, Rafael Dubeux.
Na terça-feira 12, as ações da Petrobras experimentaram uma leve alta. Os projetos do Cenpes estão parados, enquanto o equilíbrio dos preços nos postos continua distante – Imagem: Arquivo/Agência Petrobras, Marcello Casal Jr./ABR e Nelson Almeida/AFP
Ponto para o diretor de Transição Ecológica da Petrobras, Maurício Tolmasquim, que, tudo indica, não vê os brilhantes projetos elaborados pelo Cenpes, o centro de tecnologia de classe mundial da petroleira, saírem do papel por falta de determinação política do Conselho. Dubeux é um dos responsáveis pela elaboração do plano de transformação ecológica do governo Lula, elaborado pela Fazenda em conjunto com o Ministério do Meio Ambiente. Servidor de carreira da Advocacia-Geral da União e advogado com doutorado em Relações Internacionais com foco em inovação em energia de baixo carbono, autor de livro sobre desenvolvimento e mudança climática, Dubeux terá como uma das missões tirar das planilhas o plano de descarbonização da companhia. “Hoje, a Petrobras é administrada por especuladores financeiros, sem nenhum pensamento sobre o que ocorre na empresa. Querem receber o máximo de dividendos o mais rápido possível. Para eles, no futuro, basta desligar-se da empresa e aplicar o dinheiro em outro local e deixar o resto para o governo assumir”, diz Cláudio da Costa Oliveira, economista aposentado da estatal.
Em 2022 e 2023, prossegue o economista, a Petrobras desembolsou mais de 290 bilhões de reais com dividendos, pagamento muito superior ao realizado por empresas como Shell e Exxon, que têm receitas e patrimônio mais de duas vezes superiores àqueles da congênere brasileira. “Isso é um absurdo. Eles estão sugando a empresa.”
Em 2022 e 2023, a Petrobras desembolsou mais de 290 bilhões de reais com dividendos, acima de Shell e Exxon
Essa sangria, acrescenta, prejudica profundamente uma companhia que ainda precisa fazer investimentos nas descobertas que ela mesma realizou, mas estão paralisados porque o recurso que sobra, a geração operacional de caixa, é direcionado, na maior parte, ao pagamento de dividendos, um contrassenso.
A geração de caixa da estatal brasileira é mais que o dobro daquele de outras petroleiras, inclusive Shell, Esso, British Petroleum, Chevron e Total, pois a companhia cobra no mercado interno um preço pelos combustíveis muito mais alto do que as concorrentes mundo afora. “E ninguém fala nada. A empresa tem cobrado muito acima do Preço de Paridade de Importação, essa é a verdade. Aí são feitos cálculos do PPI pela Agência Nacional do Petróleo considerando, por exemplo, o diesel, como se fosse proveniente do Golfo do México. Na verdade, o que o Brasil importa hoje é quase tudo originário da Rússia, com um preço bem mais baixo. Então o parâmetro PPI é outro. E eles não mudam, para continuar a enganar a população, dizendo que estão com preços equiparados.”
O economista considera o próprio PPI um absurdo. Lula tinha prometido abrasileirar os preços, mas ocorre o contrário, a Petrobras está com preços mais altos do que todas as outras petroleiras acima citadas. “Esse é um dos fatores que fazem com que ela tenha uma capacidade de geração de caixa muito superior às outras.”
No lado das despesas, a empresa gasta muito menos em royalties de participação especial. Basta lembrar a isenção, inaceitável, criada em 2010, na participação especial na cessão onerosa. Um mecanismo, aliás, que representa uma anomalia surgida durante o processo de capitalização da petroleira, quando a União concedeu à companhia o direito de exploração de 5 bilhões de barris de petróleo no pré-sal da Bacia de Santos, em regime de partilha, com vigência de 40 anos. Além do direito de exploração, foi concedida isenção do pagamento de “participação especial” na área da cessão onerosa. Cabe acrescentar: de acordo com a Lei 12351, de 2010, que instituiu o regime de partilha de produção e a Petrobras como operadora única, o petróleo é da empresa concessionária e ela paga ao Estado a participação governamental, royalties de 5% a 10% da receita bruta, e a participação especial, cobrada nos grandes campos de alta rentabilidade, sobre a receita líquida. Uma ressalva ao modelo é que em todos os países que o utilizam, a participação governamental tende a ser baixa, porque está associada geralmente a um risco maior. “Já denunciei isso muitas vezes, e a cessão onerosa é hoje o maior produtor brasileiro. O maior campo do mundo de exploração de petróleo em águas profundas, o de Búzios, está nessa condição de cessão onerosa isenta de pagamento de participação especial”, assinala o economista. Com uma receita maior e um custo menor, a Petrobras gera muito mais caixa do que as outras produtoras do ramo. “Essas coisas têm de ser corrigidas para se chegar a uma situação mais adequada.”
Dois integrantes do Conselho confirmaram a CartaCapital que a companhia hoje olha muito mais para o mercado do que para as determinações de Lula. No comando dessa visão estaria o diretor-financeiro, Sérgio Caetano, muito próximo de Prates e com perfil de gestor de fundo de investimento. Nos corredores da sede, no Rio de Janeiro, repete-se uma história negada por Caetano, de que teria dito que não vai “desagradar em momento nenhum o mercado”. A diretoria financeira hoje tem um peso enorme, mas não é só isso. O mandato-tampão de Michel Temer e o governo anterior produziram muitas amarras para a atuação da empresa a partir da Lava Jato, desde a Lei das Estatais aos regramentos internos, que engessaram os investimentos. Quando se tolhem as inversões, por definição a companhia vai gerar muito caixa, pois o pré-sal é altamente rentável e o nível de produção continuará a aumentar até 2030. Como os custos são baixos, haverá uma geração de caixa enorme, a par desse ciclo.
Petroleiras como a Shell pagam menos dividendos. A Petrobras busca reduzir a dependência brasileira da importação de fertilizantes – Imagem: André Motta de Souza/Agência Petrobras e Tom Bastim/Shell Centre
O problema é que a Petrobras tem uma dificuldade gigantesca para realizar investimentos. As inversões cresceram no plano estratégico, para 101 bilhões, mas em termos reais passaram de 3% a 4% – a outra parte foi destinada à compra de ativos existentes. Um problema adicional: a empresa perdeu capacidade de aumentar o investimento em outras áreas além do pré-sal. Culpa, em grande medida, da mencionada herança maldita.
Outro núcleo de poder é a Diretoria de Engenharia, comandada por Carlos José do Nascimento Travassos, “completamente vinculado à gestão anterior”, segundo os conselheiros entrevistados, que o responsabilizam por “segurar o conteúdo nacional” e ter ligações com o bolsonarismo e o lavajatismo. O nível de conteúdo local está baixo e a diretoria não faz nenhum movimento para aumentar, deixando de recorrer às empreiteiras e estaleiros nacionais com experiência comprovada na construção de plataformas e navios-plataforma FPSO. Um dos conselheiros estima em 70% a parcela dos funcionários com poder de decisão nas áreas não financeiras que são bolsonaristas, lavajatistas ou ambos.
Na segunda-feira 11, após o encontro com Lula, o ministro Silveira ressaltou que “todos os investidores, quando compram a ação da empresa, sabem que o governo é o controlador, tem a maioria do Conselho de Administração, e que a companhia trabalha para torná-la cada vez mais atrativa ao investidor”. Haddad, agora com influência indireta, explicou em coletiva à imprensa que a decisão foi no sentido de que a distribuição dos lucros extraordinários será feita à medida que ficar claro para o Conselho que ela não vai comprometer o plano de investimentos da companhia. “A Petrobras estava desinvestindo, não só vendendo patrimônio abaixo do valor de mercado, mas distribuindo como dividendo um patrimônio que era do povo brasileiro. Agora isso se reverteu e passou-se a ter um plano de investimentos para a geração de empregos.” Silveira destacou que o encontro com Lula foi um “momento muito oportuno” para convidar a Fazenda a integrar o Conselho da Petrobras. “Precisa ter um representante até para trazer a ótica da Fazenda pública e da economia nacional para dentro da empresa.”
Em entrevista ao SBT, Lula reafirmou que o governo tem de baixar os preços da energia e dos alimentos e, em relação à crise dos dividendos extraordinários, sublinhou que a Petrobras não tem de pensar somente nos acionistas, mas sobretudo nos brasileiros. •
Publicado na edição n° 1302 de CartaCapital, em 20 de março de 2024.
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