Política
Ameaça tecnológica
O TSE discute propostas para combater as fake news, com foco no uso indevido da Inteligência Artificial


O Tribunal Superior Eleitoral tem até 5 de março para publicar as resoluções das disputas municipais deste ano. Trata-se do conjunto de regras que devem ser respeitadas por candidatos, partidos políticos e cidadãos durante todo o processo, da pré-campanha à prestação de contas. De 23 a 25 de janeiro, a Corte realizará uma série de audiências públicas para coletar sugestões da sociedade civil sobre temas como financiamento de campanhas e propaganda na tevê e no rádio, entre outros. Mais uma vez o tema que desperta maior preocupação é o combate às fake news, praga difícil de erradicar, até porque os algoritmos das redes sociais e as tecnologias usadas na difusão massiva de desinformação mudam ao sabor dos ventos. Hoje, a grande ameaça é o uso indevido da Inteligência Artificial, que maculou as eleições presidenciais na vizinha Argentina no ano passado.
Na reta final da disputa, os dois candidatos no segundo turno, o peronista Sergio Massa e o ultradireitista Javier Milei, usaram e abusaram da IA para produzir peças de propaganda negativas contra o adversário. Após Milei elogiar a ex-primeira-ministra britânica Margaret Thatcher no último debate, a equipe de Massa preparou um vídeo rememorando a Guerra das Malvinas, perdida para a Inglaterra. Com o suporte da tecnologia, foi possível recriar o afundamento do cruzador ARA Belgrano, que matou 323 argentinos. Nas cenas, a “Dama de Ferro” aparece dando a ordem de “atacar o Belgrano” e, logo depois, ao fundo, ecoa a voz de Milei: “Na história da humanidade houve grandes líderes, a senhora Thatcher foi um deles”.
Brant. O governo monitora o problema de perto – Imagem: Valter Campanato/ABR
Ainda contra Milei, outro vídeo que viralizou foi a recriação de uma cena do filme Laranja Mecânica. Na peça, o rosto do candidato da extrema-direita aparecia no corpo do personagem principal, o sociopata Alex DeLarge. Ao término, a mensagem: “A loucura de Milei não tem graça, é perigosa”. São duas peças claramente desenvolvidas por profissionais de marketing, usadas às claras pela equipe do peronista. Já os ataques de apoiadores do “Leão”, como o ultradireitista se apelidou, foram bem mais rasteiros. Eles recorreram às chamadas deepfakes para produzir um vídeo no qual Massa aparece cheirando cocaína. Em outra peça, um cartaz produzido com ajuda da IA, o peronista usa uma vestimenta e replica o gesto do líder chinês Mao Tsé-tung, símbolo do Partido Comunista da China.
A disputa na Argentina serviu como uma espécie de laboratório para o uso de Inteligência Artificial, recurso que deve ser muito explorado este ano não só na disputa municipal no Brasil, mas também nas eleições presidenciais nos EUA. “O alcance massivo e o poder da IA envolve a possibilidade de criar e moldar narrativas políticas, evidenciando que pode gerar influência nos eleitores e prejudicar a sua própria percepção do que é fantasia e do que é realidade”, explica a advogada Patrícia Peck, especialista em Direito Digital. Ela ressalta, porém, que a IA pode ser uma aliada no processo eleitoral e no combate à desinformação: “Pode ajudar a detectar e sinalizar onde há notícias falsas, bem como identificar quem propaga e acionar as plataformas para a remoção do conteúdo”.
Alvo de desconfiança, a IA também pode ajudar a detectar conteúdos falsos, pondera especialista em Direito Digital
De relatoria da ministra Cármen Lúcia, próxima presidente do TSE e responsável pela condução das eleições municipais, a minuta que trata de propaganda eleitoral não proíbe o uso da IA, mas exige que a informação sobre o uso do recurso esteja clara. “(A utilização) de tecnologias digitais, para criar, substituir, omitir, mesclar, alterar a velocidade, ou sobrepor imagens ou sons, incluindo tecnologias de Inteligência Artificial, deve ser acompanhada de informação explícita e destacada de que o conteúdo foi fabricado ou manipulado e qual tecnologia foi utilizada”, diz um trecho do documento. A peça produzida com IA tampouco pode prejudicar a reputação do adversário: “É vedada a utilização na propaganda eleitoral, qualquer que seja sua forma ou modalidade, de conteúdo fabricado ou manipulado de fatos sabidamente inverídicos ou gravemente descontextualizados com potencial de causar danos ao equilíbrio do pleito ou à integridade do processo eleitoral, inclusive na forma de impulsionamento”.
Pelas propostas do TSE, o enfrentamento à desinformação deve ficar centralizado na própria Corte, reduzindo o alcance dos tribunais regionais. “Na verdade, o que está sendo feito é dar muito mais agilidade ao combate às fake news e na determinação de retirada dos conteúdos, além de criar uma jurisprudência nacional”, destaca o advogado Renato Franco, especialista em Direito Eleitoral. “É uma forma de evitar decisões contraditórias, uma no Norte, outra no Sul. Haverá um entendimento único, consolidado pelo TSE, que pode ser utilizado por todos os outros tribunais regionais.”
Precursores. Javier Milei e Sergio Massa usaram e abusaram da Inteligência Artificial, um sinal de alerta para o Brasil – Imagem: Pool/Getty Images/AFP
A regra que proíbe o impulsionamento de conteúdo eleitoral, visto como uma modalidade de abuso de poder econômico, está mantida. A disseminação em massa de mensagens falsas também será configurada abuso de poder econômico, assim como os ataques inverídicos ao sistema eletrônico de votação e da Justiça Eleitoral. No rol das sanções legais a quem infringir as regras estão cassação do registro ou do diploma do candidato diretamente beneficiado e a inelegibilidade por oito anos, “a contar da data do primeiro turno da eleição em que se verificou o abuso, das pessoas que tenham contribuído para sua prática e que tenham figurado no polo passivo”. Em seu discurso durante o ato em defesa da democracia, ocorrido na segunda 8, o atual presidente do TSE, Alexandre de Moraes, defendeu a regulação das plataformas digitais e a aprovação do PL 2630, conhecido como PL das Fake News, que se encontra parado na Câmara dos Deputados.
Relator do inquérito das fake news no STF, Moraes enxerga o tema como um dos grandes perigos modernos à democracia. “As recentes inovações em Tecnologia da Informação e o acesso universal às redes sociais, com o agigantamento das plataformas, amplificado com o uso de Inteligência Artificial, potencializaram a desinformação premeditada e fraudulenta”, disse. “A ausência de regulamentação e a inexistente responsabilização das redes sociais, somadas à falta de transparência na utilização da Inteligência Artificial e dos algoritmos, tornaram os usuários suscetíveis à demagogia e à manipulação política, possibilitando a livre atuação do novo populismo digital extremista e de seus aspirantes a ditadores.”
As eleições na Argentina serviram de laboratório para o uso abusivo da IA
A fala de Moraes no evento provocou reação imediata dos deputados bolsonaristas, que prometem desdobrar-se para derrotar o PL 2630 na Câmara dos Deputados. De relatoria do deputado Orlando Silva, do PCdoB, o PL das Fake News foi aprovado pelo Senado em 2020 e passou por várias comissões na Câmara, mas aguarda votação em plenário. Em maio de 2023, a matéria foi retirada de pauta pelo presidente da Casa, deputado Arthur Lira, a pedido do próprio relator, que temia não haver quórum suficiente para aprová-lo. “Ao longo de quatro anos, o projeto avançou. É normal que haja polêmicas e tempo de maturação de propostas no Parlamento. Os líderes devem reunir-se no começo de fevereiro e avaliar a pauta”, diz Silva, lembrando que o texto não trata sobre eleições. “Foi feita a revisão do código eleitoral pela Câmara em 2021, inclusive com a consolidação da legislação eleitoral e partidária, e lá há tratamento para temas eleitorais na internet.”
A jornalista Ramênia Vieira, especialista em Gestão e Políticas Públicas e coordenadora-executiva do Coletivo Intervozes, acompanha de perto a tramitação dos projetos que tratam da regulação das big techs e da Inteligência Artificial no Congresso Nacional. Ela defende o PL 2630 como a proposta mais avançada para o enfrentamento à desinformação, com as contribuições, inclusive, da sociedade civil. “O projeto trata de transparência na internet. As plataformas defendem o modelo de autorregulação, mas ela já existe e não funciona. A política de moderação das plataformas visa combater problemas que eles consideram relevantes, e não o que está definido pela legislação brasileira”, explica, citando o exemplo do impulsionamento de conteúdo. Criminosos usam a ferramenta para aplicar golpes contra os usuários, e as big techs costumam lavar as mãos.
Silva. O PL das Fake News será retomado em breve – Imagem: Richard Silva/PC do B na Câmara
“O conteúdo impulsionado é uma responsabilidade da plataforma, porque ela está recebendo dinheiro para impulsionar aquele conteúdo”, critica Vieira. O governo Lula também vem atuando no enfrentamento à desinformação, mais especificamente em iniciativas para reverter informações falsas sobre políticas públicas e ações do Executivo. O site Brasil Contra Fake também encaminha denúncias à Procuradoria Nacional de Defesa da Democracia, da AGU. “Já enviamos 20 notas técnicas de casos graves de desinformação sobre políticas públicas, para que eles atuassem, e tivemos vitórias importantes”, explica João Brant, secretário de Políticas Digitais da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República.
Além da atuação articulada com vários órgãos da administração federal, a Secom busca estabelecer parcerias com outros países. “Contar com a cooperação internacional sempre é fundamental na luta contra ameaças cibernéticas, dada a natureza global e o tamanho da internet. A criação desses protocolos de segurança e o compartilhamento de inteligência acerca de ameaças e esforços diplomáticos são essenciais dentro desse processo”, defende Lucas Galvão, CEO da Trust Governance e especialista em Cibersegurança, Governança Corporativa e Desenvolvimento de Lideranças.
No fim de novembro, a Comissão de Assuntos Econômicos do Senado aprovou a proposta que prevê a regulamentação das plataformas de streaming. Na Casa Legislativa também tramita o PL 2338/2023, a propor regras para a utilização da IA. De autoria de Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, a proposta é desdobramento de anteprojeto produzido por uma comissão de juristas e busca implantar a segurança jurídica em torno do tema, sem implicar, no entanto, limitações para o desenvolvimento da tecnologia nas mais diversas áreas, seja no âmbito público, seja no privado. •
Publicado na edição n° 1293 de CartaCapital, em 17 de janeiro de 2024.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Ameaça tecnológica’
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