Política
Agora vai?
Com a PF nas investigações, familiares e amigos de Marielle Franco renovam as esperanças de descobrir quem mandou matar a vereadora


Desejada pela maioria dos brasileiros, a mudança de rumo nas políticas públicas do País após a troca de Bolsonaro por Lula, ainda que lenta, começa a mostrar resultados nas áreas econômica, social, científica e ambiental. No Ministério da Justiça, a saída do agora preso Anderson Torres e a chegada de Flávio Dino, com imediatos reflexos na Polícia Federal, faz com que novos ares cerquem também as investigações sobre o assassinato da vereadora carioca Marielle Franco e do motorista Anderson Gomes. Com repercussão mundial e mais importante crime político da história recente do Brasil, o atentado completará cinco anos em 14 de março sem maiores avanços na identificação de seus mandantes.
Apesar da prisão, em 2019, dos executores Ronnie Lessa e Élcio Queiroz, ainda não julgados, as investigações até aqui foram marcadas por acusações de interferência externa e por quatro trocas em seu comando promovidas pelo Ministério Público do Rio de Janeiro. Como pano de fundo, a sensação – quase certeza – dos familiares e das entidades da sociedade civil de que não havia vontade política em nível federal ou estadual para responder a uma das perguntas mais repetidas pelos brasileiros em meia década: quem mandou matar Marielle e Anderson?
Sem a interferência de Bolsonaro e com a determinação de Dino, a resposta sobre os mandantes do crime ao menos será buscada. A pedido do ministro, a PF abriu um “inquérito auxiliar” para contribuir com as investigações, atualmente conduzidas pela Polícia Civil do Rio sem colaboração federal. O objetivo é buscar fatos novos: “A PF vai apurar todas as circunstâncias já identificadas que envolveram a prática do crime, além de outras que porventura forem constatadas no curso da investigação”, diz o despacho do MJ. Dino afirmou que o governo “fará o máximo para desvendar esse crime”.
O inquérito auxiliar é um primeiro passo rumo à federalização total do processo
Em sua posse, o ministro prometeu à colega Anielle Franco, irmã de Marielle e ministra da Igualdade Racial, que descobrir os mandantes do assassinato é uma “questão de honra”. O inquérito é um primeiro passo rumo à federalização total do caso, também prometida por Dino, e se ampara em uma lei aprovada no governo FHC que permite a atuação da PF em casos de repercussão internacional.
“A fala do ministro nos anima e dá esperança. Trata-se de um assassinato que abalou a nossa democracia e é inadmissível que o Estado brasileiro continue sem identificar os mandantes”, diz a vereadora Monica Benicio, do PSOL do Rio, viúva de Marielle. Ela diz ter recobrado seu otimismo quanto à solução do caso. “Os novos ares na PF nos animam no sentido de que seja conduzida uma investigação com imparcialidade. Até agora, só o que a gente tem de fato é a prisão do Lessa e do Queiroz, que nem sequer foram levados a julgamento.” Assessora de Marielle que por um triz escapou da morte no atentado contra o carro em que estavam, a jornalista Fernanda Chaves qualifica como “um sopro de esperança” o comprometimento de Dino: “Sobretudo, se o comparamos ao tratamento dado ao caso no governo anterior, que não só menosprezava as apurações como estimulava fake news e discursos de ódio contra Marielle”.
Curiosamente, a federalização do caso foi proposta em 2020 pelo próprio Bolsonaro, logo depois de um porteiro do condomínio onde o ex-presidente morava no Rio ter relatado a presença de Lessa no local. A diferença é que, naquele momento, levar o caso à esfera federal poderia prejudicar as investigações de maneira definitiva: “Eu era contra federalizar com aquele governo e aquelas pessoas que estavam aqui. Agora sou a favor”, resume Anielle Franco. Benicio lembra que as famílias avaliaram que não era um bom momento para a federalização. “Até porque Bolsonaro, como denunciado na época pelo ministro demissionário Sergio Moro, tinha tentado intervir na Polícia Federal e chegou a mandar a polícia interrogar Lessa. Pra gente, uma PF a serviço do Bolsonaro não tinha em nada a colaborar com as investigações.” Com a oposição de parte da sociedade e em nome de um suposto “excelente trabalho” realizado pelas autoridades fluminenses, o pedido de federalização do caso feito pela Procuradoria-Geral da República foi rejeitado em 2020 pela ministra Laurita Vaz, do Superior Tribunal de Justiça.
Palavra empenhada. Dino prometeu à colega Anielle Franco, irmã de Marielle, esclarecer de vez o duplo homicídio – Imagem: Isaac Amorim/MJSP
Na verdade, para os que ansiavam saber quem mandou matar Marielle, foram anos entre a cruz e a caldeirinha. Se em nível federal não dava para confiar na imparcialidade do governo Bolsonaro, a situação não era diferente quanto à condução das investigações pela Polícia Civil e o MP estadual. No primeiro ano de inquérito, as coisas pareciam caminhar até o momento da identificação dos dois executores. Os desdobramentos das investigações tiveram reflexo no combate ao crime organizado através da Operação Intocáveis, realizada pelo Grupo de Atuação Especial no Combate ao Crime Organizado, o Gaeco. A ação culminou na prisão de diversos milicianos e na identificação do ex-policial militar e matador de aluguel Adriano da Nóbrega e seu “Escritório do Crime” como possíveis elos com a execução de Marielle. Testemunha-chave, Nóbrega foi morto em uma operação da PM da Bahia em fevereiro de 2020 sem jamais ter prestado depoimento sobre o caso.
Não foi só a morte de Nóbrega que atrapalhou as investigações. Em julho de 2021, em uma inesperada reviravolta que foi definida na época como “um soco no estômago” pela hoje ministra Anielle, as promotoras Simone Sibilio e Letícia Emile, à frente do caso e artífices das prisões de Lessa e Queiroz, decidiram abandonar o comando das investigações após denunciarem “interferências externas” ao seu trabalho. A saída aconteceu após a viúva de Nóbrega, Júlia Lotufo, ter feito à revelia das promotoras um acordo de delação premiada no qual passaria “novas informações sobre a morte de Marielle”. Semanas depois, o depoimento de Lotufo foi descartado pelo Gaeco por conter “muitas inconsistências”, mas Sibilio e Emile jamais retornaram ao caso e fogem da imprensa desde então.
“Às vésperas de um Tribunal do Júri, as promotoras tiveram de deixar o caso, alegaram vazamento e interferência. De lá para cá, absolutamente nada de novo aconteceu, nem o julgamento dos executores. É um absurdo. Trocaram a promotoria já por três vezes, uma meia dúzia de delegados, e nada. Isso justifica o deslocamento da investigação para o âmbito federal”, avalia Fernanda Chaves. A viúva Monica Benicio, por sua vez, aponta a saída das promotoras como “o momento mais dramático” em todos esses anos de investigação frustrada. “Tínhamos um diálogo constante com o MP através das promotoras, que estavam sempre apresentando as pequenas evoluções. Fazíamos reuniões mensais, onde elas apresentavam o andamento da investigação. Quando vieram a público dizer que estavam pedindo para sair do caso de forma voluntária porque poderia haver influências externas sobre o trabalho, foi muito desesperador.”
Encontrar os mandantes do crime é “questão de honra”, diz Flávio Dino
A parlamentar questiona: “É por incompetência do aparelho de Estado que não se chegou aos mandantes do crime ou há fatos políticos que impedem que essa resposta seja revelada?” Para embasar sua dúvida, ela menciona um episódio ocorrido em 14 de março do ano passado. “Pedimos que o governador Cláudio Castro recebesse as famílias da Marielle e do Anderson, além de entidades como a Anistia Internacional e a Justiça Global, entre outras. Quando o governador nos recebeu, estava lá o secretário de Segurança Pública, delegado Allan Turnowski, falando que tínhamos de confiar na palavra dele de que todos os esforços estavam sendo feitos para a elucidação do caso. Depois se descobriu que esse mesmo sujeito, em trocas de mensagens, celebrou o assassinato da Marielle, perguntando onde iria ser o churrasco para comemorar”.
Preso em setembro do ano passado por ligações com o bicheiro Fernando Iggnácio, assassinado em novembro de 2020, Turnowski, segundo o inquérito, tinha em Ronnie Lessa um de seus informantes e aliados na guerra entre seu “patrão” e o também bicheiro Rogério Andrade pelo espólio de máquinas caça-níqueis do histórico capo carioca Castor de Andrade. Com os novos rumos da investigação sobre o caso Marielle, o ex-delegado deverá ser ouvido pela PF. Já Castro, aliado de Bolsonaro e também suspeito de envolvimento com milicianos – embora recentemente enamorado pelo governo Lula –, promete ajudar Dino a elucidar o crime: “Embora fôssemos de partidos opostos, Marielle era minha colega na Câmara. Sempre defendi que a resposta ao assassinato dela precisa ser dada à família e à sociedade”, diz o governador.
O responsável pelo novo inquérito federal é o recém-nomeado superintendente da PF no Rio, delegado Leandro Almada. Ele tem familiaridade com o caso, pois comandou a operação que desmontou uma das tentativas de atrapalhar as investigações quando o policial militar Rodrigo Jorge Ferreira, conhecido como Ferreirinha, apontou o miliciano Orlando de Araújo, o Orlando Curicica, e o então vereador Marcello Siciliano como mandantes do assassinato. A farsa foi mantida como “linha principal de investigação” pelas autoridades fluminenses por sete preciosos meses, até ser desmascarada por Almada. Procurado por CartaCapital, o delegado disse que “ainda está chegando” e prefere não falar agora.
Bolsonaros. O clã tentou interferir na investigação e espalhou fake news sobre Marielle – Imagem: Redes sociais
Para os envolvidos diretamente na perda de Marielle e Anderson, a longa espera é sinônimo de sofrimento. “Meia década sem que se tenha feito justiça é muito tempo. Foram cinco anos muito difíceis, ainda mais com a pandemia e um governo genocida no meio”, diz Fernanda Chaves. Embora tenha passado tanto tempo, acrescenta a sobrevivente, o evento ainda tem implicações cotidianas na sua família: “Quando não se sabe de onde vem o ataque, você não sabe do que se proteger. E isso traduz muito minha perspectiva enquanto sobrevivente. Mas também a perspectiva de uma cidadã brasileira, pois esse crime precisa ser esclarecido pra que a gente possa restabelecer a confiança no Estado Democrático de Direito”.
Monica Benicio também se emociona: “Eu falo de um lugar de inconformidade como cidadã e parlamentar, mas também de um lugar de desespero enquanto viúva. Há cinco anos a dor da perda da minha companheira me atravessa diariamente e eu faço uma contagem diária em busca de justiça sem que ela chegue. Nada trará a Marielle e o Anderson de volta, mas a dor se acentua a cada dia que essa resposta não nos é entregue. Não só a dor das famílias, mas também a dor da sociedade brasileira”. •
PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1249 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE MARÇO DE 2023.
Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Agora vai?”
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