Cultura

A nova voz da cultura

A cantora Margareth Menezes comandará o ministério que, extinto por Bolsonaro, teve 85% do orçamento reduzido

Entre os mil desafios da pasta, está a recomposição de entidades vinculadas, como o Iphan, que cuida do patrimônio - Imagem: Kelly Fuzaro/GNT e Google Maps/Street View
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Assim como fizera 20 atrás, Lula escolheu, para a cultura, um nome ausente das bolsas de apostas e desvinculado da ala cultural do Partido dos Trabalhadores. A chegada da cantora baiana Margareth Menezes à pasta guarda, em muitos aspectos, semelhanças com a chegada de Gilberto Gil, em 2003. A primeira delas diz respeito à simbologia. Gil, com sua história e personalidade, quebrou a tradição dos intelectuais brancos à frente da cultura e, a partir de um discurso em defesa de um abstrato “do-in antropológico”, rompeu com a ideia de que a classe artística estabelecida era a beneficiária natural da política pública.

A nomeação de Margareth é um passo além nesse processo. Mulher negra, nascida na periferia de Salvador, ela representa uma fração fundamental do Brasil que tem reagido à exclusão histórica, não apenas social e econômica, mas cultural. Não por acaso, a indicação de seu nome suscitou, em alguns setores, críticas e desconfiança.

Argumentou-se, de saída, que ela não teria a capacidade de gestão necessária para reerguer a pasta e reordenar a legislação desmantelada. “Tenho lido absurdos sobre ela ser despreparada”, escreveu a produtora audiovisual Vânia Lima, também baiana, no grupo de Mulheres Fora do Eixo. “Fico decepcionada com tanto preconceito escondido sob camadas de boas intenções.”

Com o passar dos dias, o desconhecimento em torno da trajetória de Margareth, que comanda, desde 2004, um importante projeto sociocultural em Salvador – a Associação Fábrica Cultural – e tem ideias claras a respeito das indústrias criativas, deu lugar a manifestações de boas-vindas.

A cantora formalizou o “sim” para o convite na terça-feira 13, durante encontro com Lula num hotel, em Brasília. Na sequência, foi para o Centro Cultural Banco do Brasil, sede do gabinete de transição. No fim desse mesmo dia, foi anunciado o nome do historiador Márcio Tavares para a secretaria-executiva da pasta, responsável pela operacionalização das políticas. Tavares é secretário nacional do PT há quatro anos e foi ativo nas discussões em torno da Lei Aldir Blanc de emergência cultural e da Lei Paulo Gustavo. Em declarações públicas, demonstra conhecer as nuances de uma área que, ao mesmo tempo que trata de arte e identidade, faz parte do mercado de entretenimento.

Ao chegar ao CCBB, Margareth, com a voz embargada pela emoção, disse ter recebido o convite com surpresa e encará-lo como uma missão. “Agora é isso: juntar e ouvir todo mundo para a gente levantar primeiro o ministério”, afirmou. “Esse ministério é nosso. O presidente Lula me falou hoje do querer dele de colocar a cultura do Brasil numa posição melhor e a gente vai buscar isso com a força de todos. Vamos fazer a cultura do Brasil voltar ao reconhecimento mundial que sempre teve.”

“Vamos fazer a cultura do Brasil voltar ao reconhecimento mundial que sempre teve”, disse a futura ministra

A futura ministra fez eco às afirmações de alguns dos integrantes da equipe de transição, que definem como trágica a herança dos últimos quatro anos, e usou a expressão “força-tarefa”. O relatório do grupo de trabalho da área cultural é, de acordo com integrantes ouvidos por CartaCapital, assustador. Cabe lembrar que, antes de ter acabado, em 2019, o MinC havia sido ameaçado de extinção por Michel Temer, em 2016. A reação do setor fez com que o presidente tampão voltasse atrás, mas a intenção passou a integrar o cenário. Sob Bolsonaro, a nova Secretaria Especial de Cultura foi marcada por um vaivém de nomes, de ideias descabidas e de posturas virulentas. O último e mais longevo secretário foi Mário Frias, responsável pelas Instruções Normativas que, no último ano e meio, tornaram quase inviável a utilização da Lei Rouanet. Márcio Tavares, em entrevista a CartaCapital logo após o segundo turno da eleição, havia adiantando a intenção do novo governo de revogar as instruções. Ainda sobre o mecanismo de incentivo fiscal, ele apontou a necessidade de se restabelecer a Comissão Nacional de Incentivo à Cultura, extinta pelo governo Bolsonaro com o objetivo de deixar o poder decisório sobre os projetos nas mãos do secretário.

O caminho para que a lei seja destravada e para que novas ou velhas políticas sejam criadas ou recriadas é, no entanto, pedregoso. Um dos integrantes da transição resume assim o quadro: “Toda a área meio do ministério foi desmantelada”. Isso significa que não há mais o departamento de recursos humanos, o gerenciamento de contratos está a cargo ou do Ministério da Cidadania ou do Ministério do Turismo (pastas nas quais a secretaria ficou abrigada) e o número de servidores despencou, inclusive porque alguns, sem suportar o clima de terror ali instalado, anteciparam suas aposentadorias ou pediram para sair.

Essa situação se estende para as autarquias ligadas. Aquelas em situação mais grave, de acordo com integrantes do grupo, são a Fundação Palmares, que ficou sob o comando de um racista e autoritário, e o Instituto do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (Iphan), que sofreu intervenções diversas, algumas destinadas a favorecer o mercado imobiliário. A mais preservada é a Agência Nacional de Cinema, que, justamente por ser agência reguladora, teve um anteparo legal contra a sanha bolsonarista. Ainda de acordo com o documento, não divulgado oficialmente, os recursos do MinC tiveram uma redução da ordem de 85%.

Nesse curto período de trabalho, o grupo de transição vivenciou, além do luto pelo que foi destruído, a pressão diante de uma enorme demanda reprimida. A reconstrução dependerá do trabalho da parte da nova equipe do MinC, mas também da paciência do setor cultural. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1239 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE DEZEMBRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A nova voz da cultura”

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