Política

A dura vida dos marajás

Juízes e procuradores querem adicional por tempo de serviço e contam com Rodrigo Pacheco

Bastidores. Entre conversas sobre o golpismo, Fux e Pacheco falaram do mimo - Imagem: Pedro Gontijo/Ag. Senado
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O trabalhador brasileiro ganhou em abril o pior salário no mês em uma década, média de 2.569 reais, 8% a menos do que no ano da posse de Jair Bolsonaro. Quem vive, ou sobrevive, do salário mínimo terá no ­atual governo perda de 1,7% em relação à inflação, o primeiro caso desde o Plano Real, nos anos 1990, de presidente que entregará ao sucessor um piso com menor poder de compra. Não são os únicos sofredores. Entre aqueles que labutam no setor público, há situações dramáticas. Por exemplo: procuradores de Justiça. Imagine-se o inferno que deve ser a vida com um salário-base de 33,6 mil reais, o mesmo desde 2019. E a dos juízes, então, e seu contracheque médio de 48,1 mil, apenas 2,9% superior àquele do momento em que o ex-capitão subiu a rampa do Palácio do Planalto, embora a quantia esteja acima do permitido a servidores pela Constituição?

Felizmente, ainda há políticos com sensibilidade no País. É o caso do presidente do Senado, Rodrigo Pacheco, do PSD de Minas Gerais. O senador encampou a proposta de dar um adicional por tempo de serviço a magistrados e procuradores, apresentada no Senado há nove anos, e topa colocá-la em votação no plenário, a depender das costuras de bastidores. É um aditivo que existia para as ­duas carreiras até a década de 1990. No plano de agora, seria de 5% a cada cinco anos, até o limite de sete complementos, ou seja, de 35 anos, mais ou menos o tempo que os beneficiários potenciais trabalham até se aposentarem. O período que um integrante do Judiciário ou do Ministério Público passou anteriormente na iniciativa privada, como advogado, seria computado no cálculo do chamado quinquênio.

Se aprovado, o quinquênio custaria 3,6 bilhões de reais por ano aos cofres públicos

O mimo à vista custaria 3,6 bilhões de reais por ano aos cofres públicos, nas contas de um consultor do Senado, Luiz ­Alberto dos Santos. O Brasil tem 18 mil togados e 12 mil procuradores e promotores. Se o quinquênio for pago de forma retroativa aos inativos das duas categorias, ideia que não constava do projeto original de 2013, mas foi inserida no texto em 2014, o consultor estima que a despesa dobraria para 7,2 bilhões. São gastos superiores à esperada economia que o setor público terá com uma lei que tenta acabar com a festa dos “penduricalhos” inventados no Judiciário para pagar a juízes vencimentos acima do limite constitucional. Esse teto é o salário de ministros do Supremo Tribunal Federal, de 39.293 reais desde janeiro de 2019.

A lei dos “penduricalhos” foi votada em 2016 pelos senadores e no ano passado pelos deputados, mas terá de ser apreciada de novo no Senado em razão das alterações na Câmara. Segundo o relator na Câmara, Rubens Bueno, do Cidadania do Paraná, o erário poupará 3 bilhões ­anuais com a lei. Detalhe: vários “penduricalhos” serão legalizados, como o auxílio-creche para até três filhos de até cinco anos e o famigerado auxílio-moradia.

Sem benefício. Selma Arruda, que propôs a volta do penduricalho, acabou cassada – Imagem: Jefferson Ruddy/Ag. Senado

Pacheco tem dito que o quinquênio será votado no Senado só depois de a Casa apreciar a lei dos “penduricalhos”. É uma tentativa de tornar politicamente mais palatável o adicional para togados e procuradores. Tem dito também que o aditivo será pago com o orçamento existente no Judiciário e no Ministério Público. Ambos os órgãos nadam em dinheiro. O Brasil tem o sistema de Justiça mais caro do mundo, descoberta feita em 2016 pelo professor de Sociologia e Ciência Política Luciano da Ros, da Universidade Federal de Santa Catarina. O Judiciário consome 100 bilhões de reais por ano, dos quais 92% destinados a pessoal. É 1,3% do PIB, conforme o anuário do Conselho Nacional de Justiça. Na Argentina, medalha de prata, é 1%. O Ministério Público custa 0,3% do PIB, conforme Da Ros, mais do que o Judiciário inteiro de Chile, Estados Unidos, Rússia e Portugal.

No Senado, há quem diga que Pacheco encampou o mimo do adicional a juí­zes e procuradores por ser ele próprio um homem das chamadas carreiras jurídicas. Uma pista a respeito de suas motivações é a disposição de assumir a relatoria da proposta no plenário, tarefa rarísima para os comandantes do Senado e da Câmara. Cabe ao relator dar a cara a tapa perante a opinião pública, caso queira que a ideia ande, é assim com qualquer projeto. Formado em Direito em 2000 na PUC de Minas, como advogado Pacheco especializou-se em direito penal econômico. Numa atividade em que o topo lida com causas milionárias, seu patrimônio não surpreende. Declarou à Justiça Eleitoral 24,5 milhões de reais em bens, ao concorrer a deputado na eleição de 2014, sua estreia nas urnas. Quando se elegeu senador quatro anos depois, informou 22,8 milhões. Caso curioso de alguém que perdeu grana na política.

As corporações atuam para impulsionar o projeto, apesar da penúria econômica do País

Pacheco abriu o jogo a favor do quinquê­nio ao participar do Congresso Nacional do Ministério Público em 25 de março, em Fortaleza. Ali, comentou que o adicional não seria “privilégio”, mas “prerrogativa funcional”. Raciocínio tortuoso. Só será uma “prerrogativa”, na hipótese de aprovação parlamentar. O senador voltou a tremular a bandeira em 12 de maio, no Congresso Brasileiro de Magistrados, em Salvador. “A legítima reestruturação da magistratura é necessária para evitar a distorção de um magistrado no início da carreira ter a mesma remuneração que um magistrado no final da carreira”, disse. Estava ao lado do presidente do Supremo, Luiz Fux, com quem havia conversado na semana anterior sobre atritos criados por Bolsonaro e generais-ministros com o Judiciário. Na reunião, o “adicional” estava na mesa também.

A proposta do quinquênio surgiu no Senado há nove anos, da lavra de Gim Argello, do PTB do Distrito Federal, cujo mandato encerrou-se em fevereiro de 2015. Quase foi votada no fim de 2014, após as eleições. Os anais do Senado sobre o projeto, que é uma mudança na Constituição e por isso precisa de dois terços dos votos dos congressistas, expõe uns lobistas. O Conselho Nacional do Ministério Público, órgão de fiscalização de procuradores e promotores, manifestava apoio “unânime” ao aditivo. A Associação dos Magistrados Brasileiros pedia “urgência” ao quinquênio. A Associação Nacional dos Magistrados ­Estaduais apontava “ledo engano e informação irreal” sobre impactos financeiros recaírem sobre o caixa federal somente. Como se, no fim das contas, não fosse a população, na forma de impostos, a bancar tudo, seja via cofre federal ou estadual.

O projeto dormitou por todo o segundo abortado governo Dilma Rousseff e no de Michel Temer. Ressuscitou em março de 2019, por obra de uma senadora-juíza, Selma Arruda, do partido Podemos do Mato Grosso. Quer dizer, ex-senadora-juíza. Ela foi cassada pelo Tribunal Superior Eleitoral em dezembro daquele ano, acusada de abuso de poder econômico e captação ilícita de verba na campanha de 2018. Detalhe: havia sido eleita com o slogan “­Moro de saias”. A cassação foi confirmada em abril de 2020 pelo Senado. Selma não pode voltar à toga, pois havia renunciado à magistratura para disputar a eleição.

Cabe mais um. A senadora Soraya Thronicke propôs incluir os defensores públicos entre os beneficiários – Imagem: Waldemir Barreto/Ag. Senado

Apesar de ter sido tirado da cova em 2019, o projeto não saiu do lugar por três anos. Só mereceu atenção dez dias antes de Pacheco comparecer ao evento do Ministério Público no Ceará. Coincidência? Em 15 de março, a senadora sul-matogrossense Soraya Thronicke, advogada como Pacheco, propôs estender o quinquênio aos servidores da Defensoria Pública. A emenda puxou a fila de outras iniciativas do gênero. Humberto Costa e ­Rogério Carvalho, do PT, defendem beneficiar advogados públicos e procuradores do Banco Central. Lucas Barreto, do PSD, quer incluir integrantes dos Tribunais de Contas. Weverton Rocha, do PDT, policiais federais. Alexandre ­Giordano, do MDB, auditores fiscais. Alessandro Vieira, do PSDB, radicalizou: propôs quin­quênio a todos os agentes públicos.

Segundo o consultor Santos, se todas essas emendas forem aprovadas, o impacto nos cofres públicos será de 84 bilhões de reais por ano. Uma bomba fiscal. É esse o objetivo dos autores das emendas: inviabilizar o adicional para juízes e procuradores com o argumento de que outras carreiras públicas mereceriam também, mas o custo de tal privilégio não teria como ser suportado pelo ­País diante da penúria econômica.

A ver como Pacheco, o sensível, sairá dessa. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A dura vida dos marajás”

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