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A ditadura do dinheiro

O STF tenta inibir a sanha golpista de empresários pró-Bolsonaro, mas o espírito da casa-grande contamina a elite

A ditadura do dinheiro
A ditadura do dinheiro
Manicômio. O delírio de fraude nas urnas não povoa apenas a cabeça de Bolsonaro e do “papagaio” Hang. Barreira, Wrobel, Peres, Koury, Morongo e Nigri acham que o TSE quer eleger Lula a todo custo. Para impedir, sugerem crimes diversos - Imagem: Redes sociais e Tiago Queiroz/Estadão Conteúdo
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No fim de julho, a Agência Brasileira de Inteligência e a Polícia Federal receberam uma denúncia de que grupos de extrema-direita preparam um ato violento, um atentado, para levar a cabo até a eleição, com chance maior de ocorrer em 7 de setembro. O objetivo da violência seria espalhar o caos e culpar a esquerda. Sua concretização seria mais fácil se os festejos pelos 200 anos da Independência ocorressem em Copacabana, como quer Jair Bolsonaro, e não no Centro do Rio de Janeiro. O bairro é um reduto bolsonarista, lar de militares aposentados, abrigo de prédios capazes de esconder um atirador, por exemplo. A denúncia, anônima, foi feita por telefone por um integrante da Rede Nacional de Inteligência Cidadã, espécie de Abin popular. A Renic investiga bandos extremistas e crê que parte deles é financiada por empresários.

“Siga o dinheiro.” A velha máxima parece ter levado Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal, a quebrar os sigilos bancário e fiscal de oito empresários bolsonaristas golpistas. Por ordem do juiz, a turma também teve os celulares apreendidos, residências e escritórios vasculhados, redes sociais suspensas e o depoimento tomado pela PF na terça-feira 23. A batida havia sido solicitada pela própria polícia quatro dias antes. Um delegado aposta em uma nova ação em breve, em razão da análise do material recolhido e do que existe no inquérito. Prisões? Para esse delegado, mais importante do que a trilha financeira, é a comunicacional, o teor dos celulares confiscados.

Rápido no gatilho. Moraes manda recado a quem quer melar – Imagem: Roberto Jayme/TSE

Até a conclusão desta reportagem, na quinta-feira 25, a decisão de Moraes era mantida sob sigilo, não se conheciam ­suas razões. Pistas sobre o fator “grana” estão no ar. Em 17 de agosto, o site Metrópoles noticiara a existência de um grupo de WhatsApp criado por empresários defensores de um golpe contra Lula. Embora haja manifestos aqui e ali a favor da democracia (e, por tabela, contra o capitão) concebidos na alta roda, na dita “elite” sobram partidários do presidente e má vontade para com o petista. Três das mensagens reveladas levam ao caminho do dinheiro. Em 31 de maio, José Koury contou ter encomendado “milhares de bandeirinhas para distribuir para os lojistas e clientes do Barra World Shopping a partir de setembro”. É o dono do shopping. Dois meses antes, escrevera: “Alguém aqui no grupo deu uma ótima ideia, mas temos que ver se não é proibido. Dar um bônus em dinheiro ou um prêmio legal pra todos os funcionários das nossas empresas”. Resposta de Marco Aurélio ­Raymundo, o Morongo, das lojas Mormaii: “Acho que seria compra de votos… complicado”.

No Supremo, Moraes conduz um inquérito sobre milícias digitais e outro sobre uma quadrilha de carne e osso sabotadora da democracia. Sua visão é de que tanto as milícias quanto a quadrilha compõem-se de quatro núcleos. O produtor de mentiras (“gabinete do ódio”), o encarregado de disseminá-las nas redes sociais (robôs) e o político, que leva os assuntos ao debate público. “Todos esses permeados pelo quarto núcleo, que é o financeiro”, comentou em 11 de julho, na Escola Judiciária Eleitoral Paulista. “Empresários bancando com três finalidades”, prosseguiu, “ganhar dinheiro, lavá-lo e ter poder.” Ao abrir o inquérito sobre a quadrilha, em julho de 2021, anotara que entre os delitos potenciais estavam lavagem (Lei 9.613), sonegação (8.137) e crime contra o sistema financeiro (7.492).

Provavelmente a partir de descobertas desse inquérito, o 4.874, o time da delegada Denisse Ribeiro, principal investigadora das milícias digitais e da quadrilha, pediu a Moraes a operação contra os oito empresários, todos presentes no grupo de WhatsApp. Além de Koury e ­Morongo, os alvos foram Afrânio Barreira Filho ­(Coco Bambu), Ivan Wrobel (W3 ­Engenharia), José Isaac Peres ­(Multiplan), ­Luciano Hang (Havan), André Tissot (Sierra) e Meyer Nigri (Tecnisa). Para alguns ­advogados, como Pedro Serrano, professor de Direito da PUC de São Paulo, a decisão de Moraes terá sido abusiva e inconstitucional se baseada apenas na troca de mensagens. Mas, se houver indícios de financiamento ao ataque às instituições, a iniciativa estaria correta.

Pegadinha. No Jornal Nacional, Bolsonaro comprometeu-se a acatar o resultado das urnas, desde que… – Imagem: Reprodução/TV

O bolsonarismo ficou uma fera com a operação. Para os apoiadores do presidente, Moraes inventou o “crime de pensamento”. “Beira o totalitarismo”, disse o ministro da Justiça, Anderson Torres. Os filhos do capitão chegaram perto de expor o verdadeiro motivo da bronca, o medo de a torneira financeira secar. “Conheço empresários com medo de se posicionarem nessas eleições”, tuitou Flavio Bolsonaro. “É operação claramente para intimidar qualquer figura notória de se posicionar politicamente a favor de Bolsonaro e contra a esquerda”, emendou Eduardo. O PL de Bolsonaro tem 290 milhões de ­reais de fundo eleitoral e o PT, 500 milhões.

Um dia após a batida contra os empresários, Bolsonaro citou dois deles em Belo Horizonte, com os quais teria “contato”, Hang e Nigri. O primeiro é conhecido de Moraes. Em maio de 2020, fora um dos alvos de uma operação autorizada pelo juiz em um inquérito que se metamorfoseou e, hoje, trata da quadrilha antidemocrática. Na época, tivera os sigilos bancários e fiscal quebrados de julho de 2018 a abril de 2020 e o celular e um computador apreendidos. A quebra abrangia parte da última eleição. Naquela campanha, foi multado pelo TSE em 10 mil reais por pagar ilegalmente propaganda pró-Bolsonaro no ­Facebook. Também foi proibido pela Justiça de coagir funcionários a votar no capitão.

Bolsonaro vence Lula entre os brasileiros com renda superior a 10 salários mínimos, indicam as pesquisas

A eleição de 2018 fez do dono da Havan réu em uma ação de cassação da chapa de Bolsonaro que o PT propôs, em razão de disparos maciços de mentiras via ­WhatsApp contra Fernando Haddad. O empresário teria patrocinado a investida. A ação foi julgada em outubro de 2021 no tribunal e terminou com a absolvição da chapa, por falta de provas contra os réus. Nesse julgamento, Moraes declarou que, se o mar de fake news se repetisse em 2022, candidaturas seriam cassadas e os envolvidos, presos. Para reforçar a coleta de provas, o ministro acaba de nomear como assessor no TSE Eduardo Tagliaferro, perito forense especializado no mundo digital.

Nas conversas de WhatsApp recém-reveladas, fica claro que Hang pensa exatamente como Bolsonaro. Acha que o TSE quer eleger Lula com fraude nas urnas e que é preciso agir antes da eleição. Parece crer que a saída é uma guerra civil. Em 4 de junho, repassou no grupo um vídeo intitulado “Urgente: Bolsonaro alerta para uma possível guerra no Brasil”. Na véspera, o presidente dissera em Umuarama, no Paraná, que, “se precisar, iremos à guerra”. O próprio capitão lhe teria enviado o vídeo. O advogado do bilionário diz que o cliente foi “surpreendido” com a operação de agora e que nunca falou “de STF ou de golpe”.

Nigri é outro com a visão conspiratória de Bolsonaro, embora tenha dito agora, em sua defesa, que “nunca passou pela cabeça de ninguém golpe”. Faz o que pode pelo capitão, desde a eleição passada. Em 2016, na casa do empreiteiro em São Paulo, o então deputado Bolsonaro conheceu o publicitário Fábio ­Wajngarten, ex-chefe da Secretaria de Comunicação Social da Presidência e um dos cabeças da campanha reeleitoral do capitão. ­Nigri e ­Wajngarten são judeus e bem relacionados na comunidade israelense paulista. Em fevereiro de 2018, o dono da Tecnisa despontava na revista Piauí como um eleitor engajado do capitão, a quem, inclusive, havia deixado um jatinho à disposição. “Apoio quem seja contra a esquerda, Bolsonaro, Alckmin ou qualquer outro”, dizia. Cerca de um mês depois da reportagem, o nome “Meyer” era mencionado em um almoço de Bolsonaro e os filhos Eduardo e Carlos como fonte de recursos para impulsionar no Facebook conteúdo a favor do então presidenciável. O almoço foi relatado à CPI das Fake News, em outubro de 2019, pelo deputado Alexandre Frota, presente ao convescote.

No grupo de WhatsApp dos golpistas, Nigri repetiu Hang em 4 de junho: fez circular aquele vídeo do “alerta” de Bolsonaro sobre guerra. Também teria recebido o material do presidente. Ainda em junho, esculhambou, via mensagens alheias, os representantes do Supremo no TSE. E dizia que a pesquisa Datafolha divulgada por aqueles dias (47% a 28% para Lula) tinha sido “inflada” para camuflar a futura fraude eleitoral. Em 21 de julho, defendeu uma apuração paralela dos votos pelo Exército.

Efeito. A ação contra os empresários vai conter a fanfarra do 7 de Setembro? – Imagem: Ettore Chiereguini/Agif/AFP

“Faço uma homenagem especial ao amigo Meyer Nigri, em nome de quem cumprimento toda a comunidade judaica, que comemorou 5.780 anos nos últimos dias. Ficaria difícil para mim nominar cada amigo. Então peço vênia para, em nome de Meyer Nigri, cumprimentar a todos os presentes.” Palavras de Augusto Aras, o procurador-geral da República, ao assumir o cargo em 2019. Nos celulares apreendidos com os empresários golpistas, a PF achou mensagens de Aras, segundo o site Jota. O procurador seria informante de investigados? Se sim, violou o sigilo funcional. O crime é descrito no artigo 325 do Código Penal (“Revelar fato de que tem ciência em razão do cargo e que deva permanecer em segredo, ou facilitar-lhe a revelação”) e custa até seis anos de cana. Recorde-se que o delegado Bruno ­Calandrini pediu recentemente ao Supremo a prisão de diretores da PF com a acusação de que eles agiram para prevenir Bolsonaro e Milton Ribeiro de uma batida contra o ex-ministro da Educação em junho.

Segundo o Jota, as conversas de Aras com os empresários mostram críticas a Moraes e defesa da reeleição de Bolsonaro. Esse conteúdo, se verdadeiro, deixa o “xerife” sob suspeição para atuar como procurador-geral eleitoral. “Troca de mensagens entre empresários e o PGR é muito grave. Aras também é procurador eleitoral e conversava com gente que defendeu o golpe. Que amizade é essa?”, comentou publicamente a presidente do PT, Gleisi Hoffmann.

A disposição de empresários de pregar um golpe contra Lula mostra como o antipetismo viceja na “elite”. Em uma pesquisa de agosto do Datafolha, Bolsonaro ganha de Lula entre aqueles com renda superior a dez salários mínimos (12 mil reais): 43% a 39% no voto espontâneo e 43% a 40%, no estimulado. A rejeição ao petista é maior no segmento, 52% a 49%. Os cientistas políticos César Zucco, da FGV, e David Samuels, da Universidade de Minnesota, fizeram uma pesquisa, em abril e maio, com 5 mil entrevistados, para entender o antipetismo. Descobriram que 29% dos brasileiros são antipetistas e 24%, petistas. Nas classes A e B, dá 35% e 22%, respectivamente. Para os pesquisadores, as justificativas contra o PT mudaram com o tempo. Antes de chegar ao poder, o partido era baderneiro. No governo, corrupto. Na era Bolsonaro, imoral. Alegações de fachada, apontam os pesquisadores. “A causa real do antipetismo é o progresso que o PT representa para os mais pobres”, diz Samuels.

Parcialidade. Amigo dos golpistas, Aras está sob suspeita no processo – Imagem: Leonardo Prado/PGR/MPF

“Tenho feito reuniões com empresários, tenho feito reuniões com banqueiros… São indescritíveis essas reuniões. Porque não existe a palavra pobre, não existe nenhuma palavra que seja dita em relação à miséria que tomou conta deste País”, comentou Lula no congresso da Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência, em 28 de julho, em Brasília. “O empresariado em São Paulo é antipetista, preferia o Alckmin”, diz um conhecedor da Fiesp, a federação das indústrias paulistas. A cúpula da entidade divulgou um manifesto a favor da democracia, mas só 14% de seus sindicatos assinaram. O presidente de um desses sindicatos comentou a portas fechadas: “Pode ser o Lula, o Bolsonaro não dá mais”. Se a turma do PIB adorou o desmonte do aparato fiscalizatório do Estado no ­atual governo, diz a fonte, não gostou de ver a demolição ser total, a ponto de dificultar seus negócios em áreas como saúde, educação, cultura. Sem contar o pepino ambiental no front externo.

E no tal do “mercado”? Um analista político do setor, que prevê vitória de Lula, diz: a turma do “chão de fábrica” das finanças é abertamente bolsonarista, o escalão do meio é medianamente governista e os donos do dinheiro, decididamente contra o presidente. “Há preconceito em relação ao PT e a Lula. E também um ranço em relação aos governos Dilma 1 e 2 e à Lava Jato”, disse no Valor de 29 de junho Marcelo Kayath, do fundo QMS Capital, um eleitor de Lula. “Infelizmente, vejo muita gente boa de mercado e muitos empresários grandes admitindo, à boca pequena, a possibilidade de conviver com uma ditadura como algo até positivo. Muita gente diz que talvez seja necessário o Brasil passar por um regime de exceção para consertar o País. É um imenso engano.”

O juiz Moraes parece disposto, ao ­menos, a impedir que o engano se torne ­realidade. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1223 DE CARTACAPITAL, EM 31 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A ditadura do dinheiro”

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