Política

A culpa é do Cabral

Condenado a mais de 400 anos de prisão, ele é o único político enredado na operação que segue preso

Desproporcional. A pena imposta a Cabral é maior que sanções aplicadas a homicidas e estupradores em série, observa Lacerda - Imagem: Giuliano Gomes/PR Press/Folhapress
Apoie Siga-nos no

Encarcerado desde novembro de 2016 e condenado a 407 anos de prisão em processos da Lava Jato, o ex-governador Sérgio Cabral viu no fim de maio sua pena crescer 17 anos, sete meses e nove dias. Foi a 23ª condenação de Cabral, desta vez acompanhado por quatro secretários de seu governo, todos sentenciados pelo juiz federal Marcelo Bretas, da 7ª Vara Criminal do Rio de Janeiro, por corrupção passiva. A Odebrecht teria pago ao grupo uma propina de 78,9 milhões de reais durante a execução das megaobras do Arco Metropolitano, da Linha 4 do metrô e da reforma do Maracanã. A nova condenação vai em sentido contrário às anulações de sentença que beneficiaram outros réus desde que a atuação do ex-juiz Sérgio Moro – que teve Bretas como seu principal auxiliar no Rio – foi considerada parcial pelo Supremo Tribunal Federal. E também chama atenção para o fato de que Cabral é o único dos 21 políticos condenados pela Lava Jato que ainda permanece preso. O mesmo vale se pensarmos na antiga cúpula do então poderoso PMDB fluminense ou nos ex-governadores que estiveram na prisão, mas estão soltos, casos de Luiz Fernando Pezão, Moreira Franco, ­Anthony Garotinho e Wilson Witzel.

Na sentença, o juiz afirma que Cabral “foi o principal idealizador e articulador dos esquemas ilícitos” apontados no processo e afirma que, enquanto este comandou o governo, “a corrupção se espraiou por todos os órgãos da administração estadual”. Bretas define o ex-governador como “uma pessoa gananciosa que, apesar de ter total conhecimento da natureza criminosa de suas atividades e da gravidade dos seus atos, perseverou na prática de delitos ano após ano”. Apesar da inexistência de prova material de que Cabral tenha recebido diretamente o dinheiro da propina, o juiz afirma que “não é necessário que a motivação da corrupção se refira a um ato de ofício certo, preciso e determinado”. A defesa do ex-governador lembra as sentenças anuladas da Lava Jato, questiona a competência de Bretas e já anunciou que recorrerá da decisão: “A pena foi decretada por juiz absolutamente incompetente para julgar esse específico processo, está fora de qualquer justo patamar e é nitidamente arbitrária”, afirmam os advogados Bruno Borragine, ­Daniel Bialski e Patrícia Proetti.

Contraste. Os ex-governadores Garotinho, Pezão e Witzel já estão em liberdade – Imagem: Philippe Lima/GOVRJ, Marcelo Camargo/ABR e Redes sociais

Para quem vê de fora o caso de Cabral, a condução do processo teve algumas peculiaridades. “Ele fez uma opção, no mínimo estranha, de ‘quase’ confessar os crimes cometidos, entregando as pessoas com quem se relacionava sem fazer uma confissão formal, o que lhe daria o direito de diminuir a pena. Nem muito menos uma delação premiada, o que lhe daria o direito de fazer uma negociação de cumprimento da pena em regime aberto ou até mesmo prisão domiciliar”, analisa o advogado criminalista Antonio Carlos de Almeida Castro, o Kakay, ressalvando que “é extremamente difícil para um advogado falar sobre um processo específico onde ele não tem o conhecimento pleno da defesa”.

O advogado e professor de Direito Constitucional Lenio Luiz Streck diz que os episódios do mensalão e da Lava Jato provocaram “uma virada no modo de conduzir processos criminais” no Brasil, “com certa fragilização das garantias processuais”. Essa realidade provavelmente influencia o caso do ex-governador do Rio. “Não conheço os processos e as condenações sofridas por Cabral. Também não conheço as delações que ele fez nem as eventuais delações que o ‘lascaram’. Mas penso que Cabral foi atingido, de algum modo, por essas duas ondas do direito brasileiro”, diz. Streck levanta uma questão: “Se Cabral fez delação, isso não o beneficiou? Se não tivesse feito, qual seria a diferença de pegar 30, 60, 120 ou 406 anos? Minha pergunta se deve ao fato de ter apenas esses dados objetivos à disposição: condenado em 23 processos, fez delações, responde a mais uma dezena de processos e continua preso. Deve haver razões para isso. Desconhecidas por mim. Hoje, quando olhamos processos assim, não devemos esquecer o direito que se formou no imaginário lavajatista”.

De volta. Condenado a 55 anos de prisão, Cunha atua com desenvoltura na campanha de reeleição de Castro no Rio – Imagem: Lula Marques/Agência PT

Fernando Hideo Lacerda, advogado criminalista e professor de Direito Penal da Escola Paulista de Direito, afirma que a responsabilização penal de Cabral, réu confesso, é necessária, mas pondera que os exageros na punição do ex-governador “revelam o desespero do que restou da Lava­ Jato”. O advogado criminalista diz que Cabral “permanece como bode expiatório dos pecados lavajatistas” e que, “independentemente da apuração racional dos fatos, o que se busca é a execração pública”. Ele cita como exemplo a desproporcionalidade na aplicação das penas: “Por mais grave que sejam as condutas imputadas a Cabral, nada justifica que sua pena ultrapasse 400 anos de prisão, número distante das sanções aplicadas mesmo a homicidas e estupradores em série”.

Lacerda cita também a “deturpação de instrumentos colaborativos” como delação premiada e acordos de leniência. “Isso fez com que o próprio Cabral confessasse a prática de diversos crimes, tendo suas declarações expostas em rede nacional sem ter usufruído de qualquer benefício. Ele deve ser responsabilizado pelos crimes que cometeu, mas nada justifica os abusos e violações a seus direitos fundamentais”. O criminalista diz que, na ânsia por se construir uma narrativa artificial de combate à corrupção e enfrentamento da impunidade, a Lava Jato violou o direito de defesa e o devido processo legal: “O que acaba por resultar na anulação dos processos, arruinando toda e qualquer tentativa de reconstrução histórica da verdade e responsabilização penal. Prova disso são as tantas decisões de Moro e Bretas que têm sido anuladas pelos tribunais, resultando na mais absoluta impunidade que impede até mesmo separar o joio do trigo”.

Enquanto Cabral segue preso, Geddel e Eduardo Cunha entraram de cabeça nas eleições deste ano

A defesa de Cabral afirma que os processos penais respondidos pelo ex-governador têm inúmeras ilegalidades que contaminaram procedimentos: “Em breve, isso será reconhecido. Por exemplo, em diversas ações, as cortes superiores têm reconhecido a incompetência absoluta do juiz federal Bretas, que se arvorou como juízo universal de todas as causas e casos afetos ou conexos à Lava Jato, o que é inadmissível”, disseram os advogados a CartaCapital. Eles acrescentam que, “independentemente da comarca, verificou-se uma suspeita forma de agir entre acusação e juiz, como o STF já declarou em diversas oportunidades, cujos precedentes se aplicam aos casos do ex-governador”.

Após a constatada imparcialidade de Moro, avaliam os especialistas, a condução dos processos da Lava Jato na vara do Rio de Janeiro poderá vir a ser questionada: “Há muitos processos julgados por Bretas que estão no limbo ou anulados. A grande questão é que, quando falamos de casos como os de Cabral e da Lava Jato, sempre temos o ponto ‘em relação’. Fala-se de um envolvido e, inevitavelmente, pensamos a situação deste ‘em relação a outro’. Nesse sentido, é provável que a situação de Bretas vá influenciar processos em que atuou, como os de Cabral”, diz Streck.

Juízo. Os 51 milhões de reais achados no apartamento de Geddel parecem ter sido perdoados. Bretas copiou o estilo de Moro e teve muitas decisões anuladas pelo STJ – Imagem: Polícia Federal e Tomaz Silva/ABR

A condução de Bretas é tão questionável quanto a de Moro, avalia Kakay. “O que ocorreu no caso do Moro foi que nós, advogados que atuávamos na causa, fizemos cada um, em um dado momento, um questionamento. Isso foi aos poucos consolidando a posição autoritária, arbitrária e parcial do Moro, que redundou na nulidade dos processos, especificamente em relação ao ex-presidente Lula, mas também em relação a outros, seja por parcialidade, seja por incompetência. Hoje, vários casos do Bretas são questionados, o que poderá redundar em nulidades.”

Lacerda menciona, ainda, a seletividade como outra característica da Lava Jato: “Sustentou-se uma farsa durante alguns anos, materializada na construção de uma narrativa que misturava fatos incontroversos e inquestionáveis, como a corrupção no governo Cabral, as fantasias criadas pelos lavajatistas como o tríplex de Lula”. Com Moro e Bretas, diz, ocorreu a estigmatização de inimigos políticos. “Hoje está claro que o objetivo real de Moro e seus comandados era a condenação de Lula e a sua inelegibilidade em 2018. Para sustentar condenações forjadas sob medida, foi preciso expor com o mesmo clamor midiático não apenas as mentiras sobre os seus alvos, mas também situações verdadeiras como havia no governo Cabral. Ocorre que esse clamor midiático produziu distorções que custam a ser reparadas pelo restabelecimento da ordem jurídica.”

“Se Cabral fez delação, isso não o beneficiou?”, indaga Streck

É difícil dizer se Cabral é mais ou menos criminoso do que outros expoentes do então PMDB, como, por exemplo, Eduardo Cunha ou Geddel Vieira Lima, condenados a 55 e 14 anos de prisão, respectivamente. Mas, os dois, assim como outros caciques do partido, estão soltos e de volta à política, embora inelegíveis. O ex-ministro, dono de um apartamento em Salvador onde foram encontrados 51 milhões de reais em espécie, teve sua liberdade condicional concedida pelo STF em fevereiro e atua na montagem dos palanques do ex-presidente Lula na Bahia. Já o ex-presidente da Câmara, solto desde o ano passado, tem atuado com desenvoltura na organização de encontros políticos do atual governador do Rio, Cláudio Castro, do PL, com empresários e pastores evangélicos, entre outros setores. Cunha, que ingressou no PTB em março e ainda luta para recuperar na Justiça seus direitos políticos, tentará se candidatar a deputado federal em São Paulo. Enquanto isso, coordena a pré-campanha da filha Danielle, candidata a deputada no Rio pelo União Brasil.

A movimentação política de outros ex-governadores do Rio que foram condenados também realça o limbo em que se encontra Cabral. Antigo aliado e seu sucessor no Palácio Guanabara, Luiz Fernando Pezão, que foi condenado a 98 anos de prisão e passou um na cadeia, tem se reunido com prefeitos e foi levar seu apoio ao lançamento da candidatura ao Senado do presidente da Assembleia Legislativa do Rio, deputado André Ceciliano, do PT. “Já falei com políticos de vários municípios para pedir votos. O André me ajudou muito ao aprovar minhas contas, mesmo eu estando preso”, disse o ex-governador, que não esconde de seus interlocutores a simpatia pela candidatura de Lula à Presidência da República e não descarta um futuro retorno à política eleitoral.

Jóias. Cabral realmente se refestelou no poder, mas por que somente ele segue preso? – Imagem: Polícia Federal

Já Garotinho planeja voos mais altos. Após ingressar no União Brasil, ele firmou um acordo com o presidente do partido, Luciano Bivar, para se lançar mais uma vez ao Palácio Guanabara. A ideia é dar um palanque no Rio ao deputado pernambucano, que será candidato à Presidência pelo UB, mas o acordo corre contra o relógio para não ser abortado pela Justiça, uma vez que a eventual candidatura do ex-governador se ampara em uma decisão liminar do Tribunal Superior Eleitoral. Além disso, Garotinho, que está fora da prisão desde julho de 2020 e terá a filha Clarissa como candidata a ­deputada federal, já tem duas condenações em segunda instância por improbidade administrativa. Uma eventual candidatura de Garotinho, segundo as pesquisas, pode ter efeito devastador na tentativa de reeleição de Castro, que tem o UB no seu amplo leque de apoios e já designou um interlocutor – justamente Eduardo Cunha – para tentar demover o ex-governador de suas ambições imediatas.

Todos se movimentam, mas Cabral­ não está completamente alijado da política, como prova a candidatura de seu filho Marco Antônio à Câmara dos ­Deputados. O espaço do ex-governador no MDB fluminense também está garantido com a presença de um aliado, o ex-deputado Leonardo Picciani, na presidência regional do partido. Leonardo é filho de ­Jorge ­Picciani, ex-presidente da Alerj, já falecido, que também foi preso nos desdobramentos da Lava Jato. Outro ex-presidente da Alerj e figura influente no então PMDB do Rio, Paulo Melo, fora da prisão desde agosto do ano passado e ainda inelegível, trabalha pela reeleição da mulher, ­Franciane Mota, como deputada ­estadual. Procurados por ­CartaCapital, Marco Antônio Cabral e ­Leonardo ­Picciani não atenderam a reportagem até o fechamento desta edição. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1211 DE CARTACAPITAL, EM 8 DE JUNHO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “A culpa é do Cabral”

ENTENDA MAIS SOBRE: , , , ,

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo

Um minuto, por favor…

O bolsonarismo perdeu a batalha das urnas, mas não está morto.

Diante de um país tão dividido e arrasado, é preciso centrar esforços em uma reconstrução.

Seu apoio, leitor, será ainda mais fundamental.

Se você valoriza o bom jornalismo, ajude CartaCapital a seguir lutando por um novo Brasil.

Assine a edição semanal da revista;

Ou contribua, com o quanto puder.

Jornalismo crítico e inteligente. Todos os dias, no seu e-mail

Assine nossa newsletter

Assine nossa newsletter e receba um boletim matinal exclusivo