Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Voltamos à normalidade no Brasil. Aquela que nos enfiou nesse buraco

O presidente eleito, que ainda sequer tomou posse, se tornou alvo e o responsável por ‘equilibrar as contas públicas’ da farra deste governo que aí ainda está

Jair Bolsonaro e Paulo Guedes. Foto: Evaristo Sá/AFP
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Antes mesmo de tomar posse como ministro da economia, parlamentares relatores do orçamento de 2019 convidaram Paulo Guedes para propor emendas que contemplassem em parte os planos de sua gestão, afinal, a concepção e aprovação da peça sempre se dá no ano anterior à sua execução. A reação de Paulo Guedes não foi apenas tempestiva, mas expressiva de sua retumbante ignorância em matéria de gestão pública, aos moldes de seu chefe.

Conforme relataram os parlamentares em questão, Paulo Guedes não apenas não sabia da possibilidade e da própria necessidade de mexer no orçamento tendo em vista os interesses de seu governo, como imaginava que poderia fazer um relatório só seu à revelia do Parlamento: “Façam o de vocês que eu faço o meu…”, teria dito, segundo interlocutores.

Faço questão de relembrar esse episódio por dois motivos: o primeiro pelo fato de, não muitos meses distantes dali – e apesar das evidências em contrário – Folha de São Paulo publicava editorial com o título “Na direção correta” estampado com uma foto de Paulo Guedes. Na linha de apoio estava escrito o seguinte: “Agenda de reformas visa a modernização do Estado e o controle do gasto público”. Guardem bem essas palavras porque são fundamentais e voltarei a elas.

Em segundo, e já nos deslocando para o nosso tempo presente, as evidências mencionadas acima não nos decepcionaram. Paulo Guedes foi um dos piores ministros da economia desde a redemocratização e está deixando o governo com um rombo bilionário graças a sucessivos arrombamentos do tal do teto de gastos não para resolver problemas prementes da nação brasileira, mas para alimentar o obscurantismo orçamentário de sua parceria com Jair Bolsonaro e Arthur Lira e tentar reeleger seu chefe (e reconduzir-se, enfim) por meio de séries inéditas de crimes eleitorais.

Contudo, o que temos, neste momento, nos principais veículos da grande imprensa brasileira? O presidente eleito, que ainda sequer tomou posse, se tornou alvo e o responsável por “equilibrar as contas públicas” da farra deste governo que aí ainda está. Não há problemas em fazer cobranças ao governo que está por vir, o problema está no fato de que estamos diante de uma tragédia cujos responsáveis ainda estão nos governando!

Apesar da montanha de absurdos e da fazenda pública sendo deixada raspada no tacho para fins de crimes seriados, Paulo Guedes, que ainda é ministro da economia, e Jair Bolsonaro, que ainda é presidente, são tratados como coisas do passado. Muito pior do que isso, na verdade: sequer são alvos de enquadramentos devidos sobre as responsabilidades que têm, do escrutínio devido sobre os crimes que cometeram e a tragédia econômica que encomendaram para o governo de sucessão.

O que, na minha hipótese, conduz esse jornalismo a tratar esse governo de maneira profundamente assimétrica e, em alguma medida, de forma complacente? Nesse caso em questão, parece-me que se trata da relação umbilical entre esse estilo de fazer jornalístico e a predominância de certos interesses e mentalidades político-econômicas que abundam nas redações.

Volto agora àquela linha de apoio: controle de gastos e modernização do Estado para esse tipo de visão de mundo representada pela maior parte da grande imprensa brasileira significa, basicamente, reduzir a prestação de serviços públicos essenciais à população – ou seja, “diminuir o Estado” – e passar longe, a léguas de distância de diretrizes voltadas a políticas sociais que visem dar algum equilíbrio à mais socialmente desigual de todas as democracias em vigência no planeta.

Paulo Guedes só tem o privilégio de ser algo do passado mesmo sendo extremamente presente e responsável por uma barafunda neste momento porque seguiu estritamente essa cartilha. Pode não ter sido bem-sucedido na agenda de privatizações, mas foi sublime no corte de gastos voltados para serviços essenciais, como educação e saúde, e políticas de distribuição de renda.

Não se trata de imaginar que a grande imprensa tenha atuado como aliada do Governo Bolsonaro. Longe disso. Trata-se, tão e somente, de observar que tratou e ainda o trata com um desequilíbrio brutal quando em comparação aos governos petistas, inclusive o que nem tão petista é e ainda nem pela formalização de posse passou.

Mas isso não é de hoje. Juliana Dal Piva, jornalista que escreveu com riqueza de detalhes e de evidências sobre a gênese e vida de uma quadrilha de ladrões liderada pelo atual presidente é um demonstrativo gritante da relação que boa parte da grande imprensa estabeleceu com o Governo Bolsonaro. A repercussão foi pífia e se resumiu a textos de assessoria quando da ocasião do lançamento. Praticamente nenhum interesse em reverberar e aprofundar as revelações e provas contidas no trabalho de investigação primoroso de Dal Piva. Conseguem imaginar algo parecido se fosse um Lula o objeto dessa investigação jornalística? Nem a pau, Juvenal.

A própria autora, na página 165 de “O Negócio do Jair”, relembra de quando publicou revelações incontestáveis de crimes de peculato de um dos filhos do presidente, inclusive com áudios dos envolvidos. Contudo, diz ela, “mesmo assim, a maior parte dos veículos de comunicação não repercutiu a história”.

A fórmula me parece evidente para qualquer pretendente ao Palácio do Planalto: quer ter a imprensa ao seu lado que, mesmo diante dos absurdos mais inimagináveis, coloca sua máquina de produzir escândalos políticos de molho? Tenha um ministro da economia que prometa manter o fluxo do rentismo intacto, se comprometa com a redução do Estado social e mantenha longe do horizonte de expectativas quaisquer políticas voltadas para dirimir nossas tantas desigualdades. É clichê? Até pode ser. Não faltarão os arautos do “é mais complexo que isso”. No entanto, me desculpem. É isso, sim, e é bem simples

O governo Lula/Alckmin ainda nem existe, mas já tem até colunista de grande jornal aventando a possibilidade do presidente não concluir o mandato. Tudo por conta de uma PEC que visa garantir, como política pública e não como plataforma de tentativa de compra de voto, o mínimo para quem precisa do básico da dignidade. Todo o resto pode. Paulo Guedes ainda está aí e não nos deixa mentir. O presidente eleito já é o culpado antecipado e o golpismo bolsonarista deve estar celebrando.

Voltamos à normalidade no Brasil. Aquela que nos enfiou nesse buraco.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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