Talitha Haia

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Médica, escritora e mestre em psicanálise pela Sorbonne em Paris

Opinião

A duras penas e vírus, caem nossas máscaras e serpentinas

‘Nos reconhecemos como seres dependentes, solitários e faltantes. Sentindo falta de um prazer de antes que nos parecia total’ 

Membro do “Bate-Bola”, festa cultural anual do período de carnaval, comemora sozinho no Rio de Janeiro (Foto: CARL DE SOUZA / AFP)
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Em fevereiro tem carnaval, não tem carnaval. 

Há um profundo lamento vindo de todos os cantos, cantos sem voz e batucada, pelo fato de não podermos, neste ano, sambar e “botar o nosso bloco na rua”, como cantava Sérgio Sampaio. Ao mesmo tempo, Bom dia, comunidade!, sabemos que o homem encontrará outros meios de exaltar o Deus Baco e que Carnavália na voz de Marisa, Brown e Arnaldo Vamos pra avenida, desfilar a vida, carnavalizar poderá ser ouvida com uma alegria não tão tímida dentro de alguns quartos.  

Esse lamento parece novo, mas o conheço de outros carnavais. Ele carrega consigo a coisa mais primitiva do ser humano: a necessidade do outro para o encontro com a vida e com o possível do que somos. Somos, inevitavelmente, seres sociais. E somos corpo. Como a aglomeração está proibida, mas a música não está interdita, cito ainda Novos Baianos que reconheciam o carnal em “minha carne é de carnaval, meu coração é igual”.  Músculos e úteros à parte, é normal que o corpo sinta saudades de algo um dia sentido como ideal. 

Que fiquemos humanamente tristes e enraivecidos, mas não consternados. A tristeza e a decadência precisam ser reconhecidas para se transformar em atos.  

Novas fronteiras e limites foram demarcados geopoliticamente e também entre os corpos das pessoas. Entre excitação e perigo diante da presença de um outro, atravessamos um tempo marcado pelo estranho novo, por uma nova relação do corpo a corpo e pelo encontro virtual. Simultaneamente ao aprofundamento da função concreta de barreira de contato da pele e das paredes, as redes sociais proporcionaram a dissolução da noção do relacional e de espaço, a fluidez da oposição entre presença e ausência, novos métodos de aprendizado e a percepção de sempre vacilarmos entre potências e insuficiências.

 

Assim, ao mesmo tempo que elas promovem infinitas possibilidades, não escapamos do nome que lhes foi destinado: redes. E, como peixes, nos sentimos muitas vezes aprisionados em um mundo aparentemente ilimitado que mostra, no entanto, limites claros com o acesso restrito ao carnal e a um tipo específico de tato. A vida pandêmica e, para alguns, o sentimento de penitência atrelado ao isolamento, nos despiu e escancarou nossa interdependência enquanto sujeitos em um mundo que exaltava a potência do conceito de individual. O qual se revelou ser uma fantasia comprada e facilmente vestida na sociedade capitalista.  

O zelador Walel observa partes dos carros alegóricos do carnaval do ano passado no armazém da Imperio da Tijuca (Foto: CARL DE SOUZA/AFP)

Se somos, somos com os outros. Vimos, a duras penas e vírus, que o individualismo tem em si uma incoerência e perde sua potência diante do real. Nossas máscaras e serpentinas caem e nos reconhecemos como seres dependentes, solitários e faltantes. Sentindo falta de um prazer de antes que nos parecia total. 

Através da privação explícita, pudemos constatar que, além de sermos seres de contato corporificado, somos seres castrados. Pessoas que somos, vacilamos entre quereres e poderes. Ah! Bruta flor do querer!  Por isso, é preciso ouvir Caetano Veloso que embeleza o lamento sobre o querermos o que não temos.  Onde queres quaresma, fevereiro. Contudo, é preciso deixar ressaltado que esse não poder sambar na rua é um poder fazer outras coisas: o não poder isso também é uma possibilidade de estimularmos o nosso tato para o antes não visto ou reconhecido ao nosso lado. 

Como peixes, nos sentimos muitas vezes aprisionados em um mundo aparentemente ilimitado que mostra, no entanto, limites claros

Essa falta de algo sentida como mortífera, em movimentos de contração precedidos por recolhimento, pode nos impulsionar para a vida, mesmo que esta mostre seu ar sem purpurinas. A fim de alcançarmos um lugar como sujeitos, é preciso que saiamos do lugar que perdemos e que já não está mais lá. Afinal, foi assim que nascemos e que viemos parar do lado de cá, onde tem também carnaval. Por isso, reconhecer e dignificar o perdido com o tempo é necessário para que possamos criar possibilidades diante dos fatos e bolsonaros que nos são apresentados.  

Jorge Ben, não nos leve a mal, mas nosso país tropical e bonito por natureza, se é abençoado por alguém não sei, mas é desgovernardo e isso nos causa atraso e  legítima tristeza diante de mortes e diversas perdas. Entre elas, o país do carnaval sem carnaval em fevereiro, e também sem gestão de recursos para um possível enfrentamento de uma crise com inteligência. Que fiquemos humanamente tristes e enraivecidos, mas não consternados. A tristeza e a decadência precisam ser reconhecidas para terem seu valor transformado em atos. 

Para não nos darmos por vencidos, escutemos Bethânia em Samba de Benção, que canta que para fazer um samba com beleza é preciso um bocado de tristeza. Mas também que um samba tem sempre uma esperança de não ser mais triste não.  

Então, com esperança de dançarmos e, já que existimos com ausências, sofrermos menos isolados, escrevo com presença e abro alas a nossas possíveis resistências e existências.  

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