Luiz Gonzaga Belluzzo

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Economista e professor, consultor editorial de CartaCapital.

Opinião

‘Vai pra favela’

Na sociedade guiada pela riqueza, os indivíduos são coágulos monetários

O episódio sintetiza os sentimentos que frequentam o inconsciente coletivo dos mundanos enriquecidos no Brasil (Foto: Reprodução)
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Leio no UOL: “Força-tarefa fecha festa clandestina (de gente graúda) com show de Matheus e Kauan. Ao chegarem ao local, integrantes da blitz, composta por integrantes das forças de segurança do estado, Procon e Vigilância Sanitária, foram hostilizados e seguranças tentaram impedir a entrada deles. Em vídeo publicado no Twitter pelo deputado federal Alexandre Frota (PSDB-SP), que acompanhou a blitz, uma frequentadora da festa que não usava máscara proferiu xingamentos contra os agentes e, exaltada, afirmou repetidas vezes: ‘Vai pra favela’”.

Entre um grito de “vai pra favela” e outro, a advogada-modelo Liziane Gutierrez desfilou um rico e variado vocabulário de imprecações. O vídeo gravado pelo deputado Alexandre Frota nos oferece uma imagem bastante adequada do comportamento dos brasileiros do “andar de cima”. Alcoolizada, a advogada-modelo não poupou palavrões para ofender a força-tarefa.  Outrora qualificada de baixo calão, a linguagem de Liziane é hoje consagrada nos destemperos das redes em que circulam o presidente Bolsonaro e sua turma.

O episódio sintetiza os sentimentos que frequentam o inconsciente coletivo dos mundanos enriquecidos no Brasil. Lugar de polícia é na favela, como demonstrou o massacre de Jacarezinho. Não foi outra a reação de um desembargador do Tribunal de Justiça de São Paulo. Interpelado numa praia de Santos por um guarda municipal que pediu o uso de máscara, o (doutor?) magistrado sacou a carteirinha e desconsiderou a ordem. Imagino a mesma cena se desenrolar na favela: uma jovem senhora desferindo ofensas e desaforos para os policiais e agentes públicos.

No Brasil de sempre, aos senhores e senhoras de cabedais se juntam os ressentidos das camadas intermediárias, estes sempre ansiosos para sentar à mesa dos bacanas. Como não conseguem e sequer degustam as sobras que escorrem das Saturnálias, apontam suas frustrações contra a turma do andar de baixo.

 

Essa aliança entre vencedores e vencidos elegeu Jair Bolsonaro. Antes de votar no tenente indisciplinado que virou capitão, a mesma tropa se juntou para eleger Jânio Quadros e, tempos depois, escolheu Fernando Collor.

Jânio ostentava nos comícios os slogans “Varre, varre, vassourinha, varre, varre a bandalheira”. A vassourinha varreu a herança dos Cinquenta Anos em Cinco do presidente Juscelino Kubitschek, um dos períodos mais prósperos encaminhados pelo projeto nacional de industrialização e desenvolvimento. Para não deixar barato, a Vassourinha varreu o próprio Jânio. O senhor da vassoura renunciou ao mandato presidencial e precipitou o País na crise política que iria culminar no golpe de 1964.

Não foi outro o desfecho do mandato de Collor, o Caçador de Marajás. Sua temporada de caça durou dois anos. Foi apanhado caçando outros bichos em terra estranha, escoltado por PC Farias na direção de um Fiat Elba.

A trinca Jânio, Collor, Bolsonaro usou e abusou do discurso anticorrupção para alcançar a Presidência da República, ainda que seus antecedentes argentários não recomendassem esse empenho moralista.

Candidato à prefeitura de São Paulo em 1985, Jânio recebeu em seu comitê dois empresários dispostos a lhe oferecer contribuições para a campanha. Nos tempos de hiperinflação, o dinheiro parrudo circulava sob a forma de moeda-papel, sempre carregando em uma das faces a proclamação “In God We Trust”. Jânio tomou o pacote abençoado e atirou a grana em uma lata de lixo. A conversa prosseguiu. Já de saída um dos visitantes dirigiu-se à lata de dejetos para apanhar o pacote. Foi impedido. Aos gritos, Jânio esbravejou: “ Deixa aí. Depois eu jogo fora essa porcaria”.

Vai pela casa da tonelada a ­quantidade­ de tinta gasta para deplorar o poder do dinheiro, a sua força para corromper as consciências, desfigurar as almas e os sentimentos. Contra esse poder e essa força lançaram-se poetas, filósofos, teólogos e até os moralistas de folhetim.

George Simmel, em seu livro A Filosofia do Dinheiro, mostra que o sujeito atacado pelo amor “doentio” ao dinheiro não é uma aberração moral, mas o representante autêntico do indivíduo criado pela sociedade argentária. As qualidades dos bens e o gozo de suas utilidades tornam-se absolutamente indiferentes para ele. Suas preferências, sentimentos, desejos, são totalmente absorvidos pelo impulso de acumular riqueza monetária.

É curioso observar como a sociedade argentária, ao transformar violentamente os indivíduos e suas subjetividades em simples coágulos monetários, pretenda ao mesmo tempo colocar barreiras, ensinando-lhes as virtudes da igualdade, da moderação e da solidariedade. Então, como podemos falar de sentimentos como honradez e dignidade em uma sociedade na qual todos os critérios de respeito ao outro são determinados pela quantidade de riqueza monetária que cada um consegue acumular?

Publicado na edição nº 1166 de CartaCapital, em 15 de julho de 2021.

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