Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Uma semana para lembrar que a barbárie foi institucionalizada no Brasil

Rememorando os versos dos Racionais MC’s, saltam aos olhos ‘a roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura’ de mulheres negras que perderam filhos, netos, maridos, namorados e amigos

Divone Ferreira, mãe de Gabrielle Ferreira da Cunha, 41, morta por uma bala perdida enquanto estava dentro de sua casa, na Vila Cruzeiro (Foto: ANDRE BORGES/AFP)
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Embora nos últimos tempos ler jornais tenha se tornado uma verdadeira penitência, não consigo abrir mão desse hábito que herdei do seu Nicolau, meu pai. Um hábito diário, quase uma religião. 

Na terça, pouco depois de tomar o meu café, me deparei com a notícia de que 11 pessoas haviam sido assassinadas em uma “operação policial” na Vila Cruzeiro, favela da Zona Norte do Rio de Janeiro. À noite, ao dar uma espiada no noticiário, o número de vítimas tinha dobrado. Àquela altura, 22 moradores haviam perdido a vida sob a alegação de “combate às facções criminosas”, conforme afirmou o governador fluminense Cláudio Castro, cuja gestão acumula 39 chacinas. 

Na manhã de quarta, ao acessar o site da Folha de S. Paulo, descobri que a edição impressa, publicada horas antes, já estava velha. Com destaque, a manchete registrava o número de mortes divulgado na noite anterior, contudo, por volta das 10h, mais três corpos foram contabilizados. No dia seguinte, houve uma nova atualização, com 23 pessoas executadas, segundo os dados oficiais. O massacre que durou cerca de 12 horas contou com a conivência de Castro, do presidente da República, de uma parcela da sociedade e de setores da imprensa. 

A capa da Folha trouxe ainda uma foto de moradores da Vila Cruzeiro sendo retirados já sem vida da traseira de uma picape, na porta de um hospital. Os corpos tinham cor. Os familiares que aguardavam por notícias, também. Assim como na chacina da Candelária, de Vigário Geral, de Costa Barros e de tantas outras, saltam aos olhos o fato de que a população negra é o principal alvo dessa carnificina.

Rememorando os versos dos Racionais MC’s, saltam aos olhos “a roupa humilde, a pele escura, o rosto abatido pela vida dura” de mulheres negras que perderam filhos, netos, maridos, namorados e amigos.

A foto que estampou aquela edição do jornal paulistano me fez lembrar da minha infância, quando passava férias na casa dos meus tios e primos que vivem na roça. Por diversas vezes, vi porcos serem abatidos e transportados na carroceria de caminhonetes, da mesma maneira que o fotógrafo da Folha registrou a remoção das vítimas. 

As fotos, os depoimentos, as declarações de agentes públicos e os vídeos que circulam na internet evidenciam que moradores de territórios como a favela carioca são vistos por uma parcela significativa da sociedade como suínos que sujam, ameaçam a cidade e, em razão disso, devem ser mortos. Sem qualquer chance de defesa, sem direito a um julgamento justo, contrariando o que determina a Constituição brasileira. Enquanto forem discriminados dessa maneira, infelizmente, massacres como o que acorreu na Vila Cruzeiro irão se repetir. Para dor, tristeza e indignação de uns. Para alegria, para contentamento, para atender aos interesses políticos de outros. Viver em um país alicerçado pelo racismo, pela violência e pela desigualdade tem dessas coisas.

A chacina da Vila Cruzeiro é mais uma prova de que a barbárie está institucionalizada no Brasil, bem como o assassinato de Genivaldo de Jesus Santos, na cidade de Umbaúba, interior de Sergipe, mostra que os valores democráticos, os marcos civilizatórios e a garantia dos direitos humanos sucumbem neste país. Esquizofrênico, Genivaldo foi rendido por agentes da Polícia Rodoviária Federal que, em seguida, o prenderam na parte traseira de uma viatura. Não satisfeitos, lançaram spray de pimenta e uma granada no camburão, transformando o veículo em uma verdadeira câmara de gás. Genivaldo, que era negro, não resistiu à sessão de tortura, vindo a falecer em decorrência de asfixia mecânica. Casado, aos 38 anos, Genilvado deixou um filho de sete anos.

As cenas de terror registradas pelos celulares de pessoas que presenciaram a ação viraram notícia em jornais dos Estados Unidos, da Europa e da América Latina. Tão brutal quanto o ato cometido por agentes da PRF é a nota emitida pela instituição. Ao longo de uma página, o que se vê é o mais puro cinismo, como também total desprezo pela vida humana e a certeza de impunidade.

Embora fragilizados, ainda há elementos de que vivemos numa democracia, mas o que tem predominado neste país é a República Federativa da Barbárie. O noticiário desta semana não me deixa mentir. 

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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