Guilherme Mello

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Professor do Instituto de Economia da Unicamp e pesquisador do Centro de Estudos de Conjuntura e Política Econômica (CECON-UNICAMP)

Opinião

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Uma guinada no crescimento

O novo arcabouço fiscal poderá tornar-se um dos sustentáculos fundamentais de um ciclo de desenvolvimento justo e sustentável

As bandas de resultado primário foram projetadas para dar conta das flutuações cíclicas da economia - Imagem: Cris Faga/NurPhoto/AFP
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Na última semana, a equipe econômica do governo Lula anunciou a proposta de Novo Arcabouço Fiscal (NAF). O ­atual conjunto de regras fiscais brasileiras, além de ter perdido credibilidade e não criar um horizonte previsível para a política fiscal, padece de múltiplas deficiências, como a pró-ciclicidade, a excessiva rigidez e a tendência de redução dos investimentos e gastos sociais.

A PEC da transição possibilitou a revisão dessas regras através de uma lei complementar e recompôs o orçamento necessário para a retomada de diversas políticas públicas fundamentais para o ­País. O passo seguinte será a aprovação de um novo marco fiscal capaz de recolocar o Brasil no rumo do desenvolvimento justo e sustentável.

Após alguns meses de debates com especialistas, organismos internacionais, dezenas de estudos de caso e uma ampla revisão da literatura, o NAF inspira-se no que há de mais atual no debate de regras fiscais mundo afora, ao mesmo tempo que aprimora a experiência brasileira recente. Ele combina um horizonte de sustentabilidade fiscal de médio prazo com características que têm se provado fundamentais nos casos de regras fiscais bem-sucedidas: transparência, flexibilidade, anticiclicidade, proteção aos investimentos e garantia de recursos para as políticas sociais.

Ao combinar de maneira harmônica uma regra operacional (de gastos) com metas de médio prazo (de resultado primário), o NAF é capaz de produzir uma transição da atual situação de déficit para um cenário de superávit primário, ao mesmo tempo que permite o crescimento real dos gastos públicos todo ano, desde que respeitando o limite de 70% do aumento da receita. Ou seja, o Brasil vai reencontrar a sustentabilidade fiscal enquanto fortalece os investimentos públicos e as políticas socioambientais.

Os limites mínimo (0,6% ao ano) e máximo (2,5% ao ano) de crescimento do gasto primário servem como mecanismos anticíclicos, impedindo que a despesa cresça demasiadamente em momentos de boom econômico e evitando abruptos cortes de gastos nos momentos de recessão. Assim, as políticas públicas ganham maior grau de previsibilidade e capacidade de planejamento.

As metas de resultado primário servem como horizonte para o planejamento da política fiscal no médio prazo. Elas representam um compromisso do governo com a sustentabilidade da dívida, sem impor a redução do Estado e o desmonte das políticas públicas. Ao contrário, elas incentivam o Estado a recuperar receitas e rever seu atual sistema tributário, ineficiente e promotor de desigualdades, que se encontra repleto de “jabutis” que beneficiam poucos, mas custam centenas de bilhões de reais ao Estado brasileiro todo ano.

As bandas de resultado primário, projetadas para dar conta das flutuações cíclicas da economia, são um avanço importante em relação à Lei de Responsabilidade Fiscal, pró-cíclica em sua formulação original. Também saem de cena a criminalização da política fiscal e a exigência constante de contingenciamentos, que afetam a capacidade de planejamento do Estado.

Em vez de punir criminalmente, o NAF vale-se de incentivos econômicos para reforçar o cumprimento das metas. Caso o governo produza um resultado primário superior ao limite máximo estabelecido por sua banda, uma parte do excedente será direcionada para investimentos públicos no ano seguinte, revertendo o processo de cortes que levou a seu menor nível na história em 2022. No caso do não cumprimento da banda inferior da meta de resultado primário em determinado ano, o governo terá de reduzir o crescimento real do gasto no ano seguinte para 50% do aumento da receita, visando retomar a trajetória do primário originalmente planejada.

É importante situar a proposta do novo arcabouço fiscal na realidade econômica do Brasil e do mundo de 2023. O cenário encontrado pelo novo governo Lula é bastante distinto daquele de 2003, quando o Brasil se encontrava em uma crise de escassez de divisas, mas com um superávit primário de 2,1% do PIB, um nível de gasto/PIB de 15,9% e uma dívida interna na casa dos 57% do PIB.

O objetivo é viabilizar a sustentabilidade fiscal e a harmonia da política macroeconômica

Atualmente, o País não vive o risco de crise no balanço de pagamentos, graças à quitação da dívida externa e ao acúmulo de reservas internacionais nos governos Lula e Dilma. No entanto, o PLOA de 2023 prevê um déficit primário próximo de 2% do PIB, os gastos públicos somam um montante próximo de 18,5% do PIB e a dívida interna supera os 70% do PIB. Ademais, as despesas com juros da dívida pública seguem elevadas, na casa dos 7% do PIB previstos para 2023.

Em parte, o atual déficit primário deve-se à erosão da base de arrecadação do Estado, dilapidada por um conjunto de desonerações e medidas sem justificativa econômica, que retiraram mais de 1,5% da arrecadação pública entre 2022 e 2023. Para devolver a arrecadação para seu nível histórico de 19% do PIB e zerar o déficit até 2024, o Ministério da Fazenda anunciou um conjunto de medidas de recomposição das receitas, sem apelar para a criação de novos tributos ou para o aumento de alíquota dos já existentes, bastando a correção de medidas injustificadas e a cobrança dos impostos devidos daqueles que hoje faltam com suas obrigações.

Ademais, o Brasil atualmente apresenta a maior taxa de juros real do mundo, levando a uma rápida desaceleração do mercado de crédito desde meados de 2022. A recuperação da previsibilidade e da credibilidade da política fiscal criará condições para a harmonização da política monetária e fiscal, possibilitando uma redução mais veloz dos prêmios de risco e da taxa básica de juros.

A aprovação do NAF pode marcar uma guinada importante nas possibilidades de crescimento econômico. É evidente que a retomada do crescimento econômico não depende unicamente da política macroeconômica. Mas, ao reduzir incertezas, recuperar a credibilidade e a previsibilidade da política fiscal, o NAF produzirá um horizonte fiscal importante para a mudança de rumos da política monetária e fará isso enquanto viabiliza o fortalecimento gradual das políticas públicas, que poderão apresentar crescimento real de seu orçamento ano após ano, partindo de uma base já ampliada pela PEC da transição.

Desse ponto de vista, o novo arcabouço fiscal pode provar-se um dos pilares fundamentais de um novo ciclo de desenvolvimento justo e sustentável, preservando a potência das políticas públicas e o espaço para o investimento público, recuperando a sustentabilidade fiscal e viabilizando a harmonia da política macroeconômica. •


*Secretário de Política Econômica do Ministério da Fazenda.

Publicado na edição n° 1255 de CartaCapital, em 19 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Uma guinada no crescimento’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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