Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Um dia qualquer

O que aconteceu naquele 29 de abril de 1994?

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Folheando o livro 1001 dias que abalaram o mundo, me veio à cabeça os dias que não abalaram o mundo, dias quaisquer que costumamos dizer que passaram em branco.

Em 1992, a redação da revista semanal de informação francesa Le Nouvel Observateur, que todos chamam carinhosamente de Nouvel L’Obs, começou a pensar nos trinta anos que a revista faria em 1994. Dois anos antes, numa reunião de pauta, mais precisamente em junho de 1992, foi convocada uma reunião para pensar número especial de aniversário.

No meio da reunião, alguém teve uma ideia brilhante.

A ideia era a seguinte: pedir a escritores de todas as partes do mundo para fazer o relato de um dia qualquer escolhido pela redação. Imediatamente, aqueles especialistas em derrubar pautas colocaram inúmeras pedras no caminho.

Como escolher os escritores?

Como entrar em contato com todos eles?

Vocês acham que eles vão responder?

Como vão nos enviar os textos?

Numa época sem internet, o único meio de enviar o pedido a eles era através de carta ou telegrama, mas por telegrama seria difícil, em poucas palavras, explicar o objetivo. Apesar dos pessimistas, a ideia foi adiante. Uma equipe formada pela direção da revista começou a fazer a lista dos escritores, enquanto outros buscavam os contatos. A carta para eles foi padrão. Resumindo: Escreva como você viu o dia 29 de abril de 1994.

Cartas foram disparadas para a América do Norte, para a América do Sul, América Central, Europa, Ásia, Oceania e Oriente Médio.

O entusiasmo na redação da Nouvel L’Obs era grande quando pensaram que os escritores, naquele momento, estavam começando a receber o pedido.

Thanassis Valtinos, na Grécia, Ryôtarô Shiba, no Japão, Lu Wenfu, na China, Putu Wijaya, na Indonésia, Gamal Al Ghitany, no Egito, Pierre Mertens, na Bélgica, Amoz Oz, em Israel, Ernesto Sábato, na Argentina, Václav Ravel, na República Checa, Daniel Boulanger, na França, Salman Rushdie, na Inglaterra, Kitia Touré, da Costa do Marfim, Osvaldo Soriano, na Argentina e tantos outros.

Para o Brasil, seguiram três cartas. Uma para o escritor baiano Jorge Amado, uma pra o mineiro Autran Dourado e uma terceira para o gaúcho Moacyr Scliar.

Passaram-se alguns dias, meses, mais de ano. Quando o dia 29 de abril de 1994 chegou, a redação da Nouvel L’Obs não cabia em si. Era hoje, uma sexta-feira, o dia escolhido para os escritores colocarem no papel os seus relatos.

Será que vai dar certo?

Será que estão lembrando?

O que vão escrever?

O dia passou sereno, nada aconteceu que abalasse o mundo naquele 29 de abril de 1994. Agora restava esperar os envelopes chegar.

E chegaram. Muitos logo no início de maio, alguns em envelopes pardos, outros em envelopes com as cores das bandeiras dos países e selos maravilhosos. Na data prevista, lá estavam os 240 envelopes, três deles eram verdes e amarelos.

Foi uma leitura atenta e minuciosa. Os primeiros relatos eram bem pessoais.

“Nesse dia, eu sai da cama às sete horas da manhã, onde dormi em Sidney com o amor da minha vida”, começou o seu relato o escritor australiano Frank Moorhouse.

“Abri a cortina e o sol iluminou o meu leito”, escreveu na primeira linha o japonês Junuchi Saga.

“Oito horas da manhã. Aqui é o Irã. Estou no meu pequeno apartamento em Teerã”, contou o escritor iraniano Ramin Jahan Begloo.

‘Meu dia começou às quatro horas da madrugada e só terminou por volta de onze da noite, como de costume, aqui em Brazzaville. Estou nesse Congo podre, nessa África podre, mas me pergunto se não é o mundo inteiro que está podre”, desabafou o congolês Labou Tansi.

“Acordei em Madri e o telefone não me dá sossego”, foram as primeiras palavras do colombiano Gabriel García Márquez.

Gabo ganhou o prêmio Nobel de Literatura em 1982

“Como todos os dias, acordei disputando o jornal com Helena. Ela só toma o café da manhã lendo as notícias. Um dia, ela me disse: Quando eu morrer, não coloque flores no meu túmulo. Coloque jornais”, foi o que disse o uruguaio Eduardo Galeano, ao iniciar o seu depoimento.

“Um dia comum em que não aconteceu nada de extraordinário”. O norte-americano Norman Mailer foi super sincero.

Jorge Amado começou assim: “As emoções do 29 de abril de 1994 começaram no dia anterior, quando visitamos o Axé Opo Afonjá, um dos terreiros de candomblé mais importantes do Brasil”.

Autran Dourado não dormiu à noite: “Acordei várias vezes durante a madrugada, ansioso porque teria de escrever o que aconteceu hoje”.

Os primeiros relatos foram bem pessoais, mas muitos escritores procuraram fugir do narcisismo nostálgico e escreveram contos extraordinários, alguns com um pé no realismo fantástico.

Com aquela montanha de cartas guardadas a sete chaves, os editores começaram a colocar ordem, separando cada depoimento por região do Planeta Terra. A edição demorou um mês para ficar pronta e o resultado foi um número especial de 282 páginas: 240 Escritores contam como foi um dia no mundo.

Nessa tarde ensolarada de maio, me veio na cabeça, a ideia de pedir a alguns escritores brasileiros para contar como foi o primeiro de janeiro de 2023. Isso, se sobrevivermos até lá.

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