Opinião
Um convite ao desarmamento de almas
Muitas vezes vivemos encerrados em grades inexistentes, colocadas nas nossas gaiolas por nós mesmos, temerosos de demonstrar nossas fraquezas
“Sim, é verdade que a direita conquistou muitos evangélicos com uma pauta conservadora sobre questões sociais e morais. Mas será que isso significa que devemos nos render a seu projeto reacionário?”
— James N. Green
Os evangélicos são muito diversos: vão desde denominações mais históricas, como luteranos e presbiterianos, até as mais recentes, as neopentecostais.
Os setores progressistas deveriam avaliar melhor a relação com eles, começando por agradecer-lhes por serem os atores mais presentes nas periferias. Na maioria das vezes, provêm os únicos espaços de socialização — sobretudo para as mulheres, uma vez que os homens contam, ao menos, com os bares, que infelizmente apresentam os efeitos colaterais próprios de locais de venda de bebidas alcoólicas.
Ao lado disso, no combate aos feminicídios, as igrejas evangélicas podem exercer papel preponderante, uma vez que, sendo casados, muitos pastores adquirem maior legitimidade: eles próprios convivem com conflitos matrimoniais e precisam superá-los pacificamente.
Em culturas machistas como a brasileira, é muito importante que os homens possam penetrar no universo feminino, para compreendê-lo. Com efeito, a cosmovisão feminina é menos agressiva e violenta.
Faz-se mister que os homens possam aquilatar o peso que recai sobre as costas de uma cultura hipermasculinizada, tóxica, plena de conceitos vetustos de honra, moral e relações sociais, sobretudo entre homens e mulheres. À sociedade caberia aferir qual a incidência dessas visões distorcidas como móvel de feminicídios.
No intuito de compreender melhor o universo feminino, recomendo vivamente o filme panamenho-colombiano Querido Trópico, dirigido pela panamenha Ana Endara e estrelado por Paulina García e Jenny Navarrete. Trata-se de uma das películas mais delicadas que vi na vida. Como homem, senti-me levado pela mão para ingressar no delicado, sensível e extraordinário universo feminino. Um filme que deveria ser assistido por meninos, homens e todos que acreditam em um mundo melhor, mais bonito e mais poético.
Em A Hora da Estrela (Rocco), Clarice Lispector registra as reflexões da protagonista Macabéa — e as próprias:
“…não sabia enfeitar a realidade. Para ela a realidade era demais para ser acreditada. Aliás, a palavra ‘realidade’ não lhe dizia nada. Nem a mim, por Deus… Quando acordava se sentia culpada sem saber por quê, talvez porque o que é bom devia ser proibido. Culpada e contente.”
Nesse cipoal de culpas fantasmáticas vivemos muitas vezes, com enorme dificuldade para sequer conseguir enxergar a força, a claridade e a potência da liberdade.
Em momento similar, peguei-me sorrindo na rua, em uma tarde linda, mas sem tantos motivos “objetivos” para isso. A razão foi ter pensado em Vinicius de Moraes. Ouvindo uma de suas músicas, pensei no quanto gosto dele: pela lírica, pela poesia, mas também pela relação complexa que teve com uma instituição tão conservadora quanto o Itamaraty.
Por outro lado, no início da semana, eu tivera de ser rapidamente internado para exames médicos — e que felicidade poder ter pago o tratamento com meu plano de saúde, proporcionado pelo próprio Itamaraty. Foi necessário falar com o plano na Alemanha e, mesmo com febre alta, o inglês fluiu: heranças de uma vida vivida, mas que deixou coisas boas, encontros, “embora haja tanto desencontro pela vida”, como já dissera o Poetinha. Que alegria me identificar com esse homem excepcional! Não era uma tarde fácil, mas ficou boa: dos desencontros surgiu esse encontro profundo.
Pensei também em Clarice, que fora casada com diplomata e tantas atividades exerceu no exterior nessa qualidade, por pura boa vontade e coração generoso — inclusive como enfermeira durante a Segunda Guerra Mundial, em Nápoles, onde o marido servia então.
Em Confiança (Vozes), Anselm Grün reflete sobre o autoconhecimento:
“C.G. Jung diz que, para se adquirir autoconfiança, é preciso aceitar as sombras e reconciliar-se com elas. Isso exige humildade e humor… Uma pessoa que assume seus erros e aceita suas sombras é capaz de lidar tranquilamente também com os outros; ela não precisa ter medo de que descubram suas fraquezas… Já que assumiu as suas sombras, ela pode interagir com os outros sem ficar girando em torno de sua suposta força; simplesmente está presente e se abre às pessoas; não precisa representar o papel de uma pessoa melhor, mas se apresenta do jeito que é. Isso gera relacionamentos e a torna simpática… Quando o ser humano trilha o caminho que leva do ego ao si-mesmo, ele se torna cada vez mais tranquilo, autêntico e livre.”
Muitas vezes vivemos encerrados em grades inexistentes, colocadas nas nossas gaiolas por nós mesmos, temerosos de demonstrar nossas fraquezas — talvez nossas melhores partes.
Sábia e perspicaz, Clarice dizia: “Mude, mas comece devagar, porque a direção é mais importante do que a velocidade.”
Às mudanças individuais e coletivas somos chamados. Conheçamos mais os nossos universos e as transformações serão mais efetivas, tranquilas e prazerosas.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
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