Josué Medeiros

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Josué Medeiros é cientista político e professor da UFRJ e do PPGCS da UFRRJ. Coordena o Observatório Político e Eleitoral (OPEL) e o Núcleo de Estudos sobre a Democracia Brasileira (NUDEB)

Opinião

Um caminho para o Brasil pós-golpe(s)

A tarefa que a democracia brasileira tem pela frente é enorme

Ato no Congresso Nacional sobre o 8 de Janeiro. Foto: Sergio Lima/AFP
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É com muita satisfação que começo esse espaço regular no site da CartaCapital. Primeiro, por ser a Carta um veículo de credibilidade amplamente reconhecida, decorrente do seu profundo compromisso com o fortalecimento da democracia brasileira. E este é também o principal objetivo que me leva a essa colaboração. Trata-se de uma missão necessária e urgente um ano após a derrota da tentativa de golpe bolsonarista de 8 de Janeiro, mas com uma extrema-direita ainda forte na nossa sociedade. 

A questão passa justamente pelos múltiplos entendimentos sobre o que vem a ser o “fortalecimento da democracia”. Parte da elite brasileira atua dia e noite para limitar esse processo às instituições, sem atacar de frente o conjunto das desigualdades – econômica, social, racial, de gênero, ambiental, regional, geracional – que atravessam a nossa sociedade. Essa escolha mina a legitimidade das nossas instituições junto à maioria do povo e termina, mais cedo ou mais tarde, fortalecendo quem ataca nossa democracia. É fundamental, portanto, entender que para derrotar de fato os movimentos fascistas contemporâneos é preciso ir muito além da defesa institucional da democracia. 

Não há dúvida de que o bolsonarismo foi derrotado (nas urnas e na tentativa de golpe) pela força das nossas instituições. Durante o governo Bolsonaro, o Supremo Tribunal Federal, a Justiça Eleitoral, boa parte do parlamento, dos governadores e prefeitos foram decisivos para a manutenção de um ambiente institucional minimamente democrático, o que ajudou a conter os ataques que ele articulava contra o povo brasileiro. 

Entretanto, se dependesse somente das instituições, seguramente Bolsonaro teria triunfado. A maioria do Congresso aprovou todas as medidas econômicas do ex-presidente que violaram as regras do jogo e que foram cruciais para que ele ampliasse sua votação para além do bolsonarismo raiz. O próprio STF tergiversou sobre essas políticas. Muitos governadores e prefeitos e boa parte das elites políticas e econômicas preferiam uma vitória da extrema-direita a se alinhar com Lula em uma frente democrática.   

A verdade é que, sem a liderança de Lula, a democracia brasileira teria sido mais que abalada: teria sido efetivamente derrotada e viveríamos hoje o começo de um novo regime institucional, hegemonizado pelo autoritarismo, que naturalizaria as desigualdades e legitimaria a violência como método de resolução dos conflitos. 

Lula conseguiu essa vitória não apenas pelas suas qualidades como principal liderança popular da nossa história: a oratória, o tino político, a capacidade de articular e mediar diferentes setores. O principal mesmo está no que ele representa. Para a maioria do povo brasileiro, o atual presidente é a expressão política mais concreta da efetivação dos direitos que a democracia promete – mas, para grande parte, não cumpre. Essa decepção em relação às promessas fundamentais da democracia é o combustível que alimenta os movimentos de extrema-direita no ocidente, inclusive no Brasil. Lula, contudo, demonstra que é possível sonhar e trabalhar coletivamente pela efetivação dos direitos que toda a cidadania demanda e merece. 

A tarefa que a democracia brasileira tem pela frente é enorme. É preciso garantir e ampliar direitos de diversos segmentos da sociedade. Trabalhadores de todos os setores têm jornadas de trabalho maiores com salários menores e mais dificuldade de promover bem-estar para suas famílias. Uma parte tem alguns direitos trabalhistas, mas vê seus postos de trabalho ameaçados. Outra parte, nem isso.

Os trabalhadores sem direitos querem proteção social, mas não aceitam – aliás, sabem que não é possível – as promessas da CLT; pessoas negras, especialmente as que vivem nas periferias, não aguentam mais serem privadas do direito à vida, de ir e vir, das ameaças à sobrevivência de suas famílias e das chances de ter uma vida digna pelo seu pertencimento racial e lugar de moradia; mulheres não suportam mais as desigualdades salariais com homens, as violências de gênero a que são submetidas e a invisibilidade da economia dos cuidados da família que historicamente recai sobre elas; habitantes das grandes e médias cidades, sobretudo os mais pobres, sentem cotidianamente os efeitos da emergência climática, que ameaça suas vidas e de suas família e destrói o pouco que conseguiram construir com muito suor; jovens se veem sem perspectivas de futuro e as pessoas idosas, que serão maioria da população, sentem que a sociedade não as inclui em um projeto comum; o trânsito religioso, com milhares de pessoas das classes populares escolhendo a crença evangélica, impõe desafios culturais e sociais imensos; saúde e educação cada vez mais mercantilizadas e, ao mesmo tempo, com qualidade cada vez mais questionável, sufocam a renda das classes médias trabalhadoras; a fome e falta de moradia alcançam enormes contingentes de pessoas que se sentem descartáveis pelas nossas instituições. 

A lista poderia ser prolongada quase que infinitamente. A democracia importa na medida em que essas tarefas são enfrentadas com êxito e que as pessoas sentem, dia após dia, geração após geração, que seus direitos e bem-estar estão mais seguros e se ampliando. Eleições fazem a diferença porque as pessoas percebem nelas um caminho para efetivar seus sonhos e suas demandas individuais e se veem parte de um pacto coletivo. Avançar nessa direção é a única forma de, efetivamente, fortalecer a democracia e contribuir com essa travessia será o nosso objetivo com as análises que se seguirão nesta coluna ao longo do ano.  

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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