Francisco Carlos Teixeira

Professor Titular de História Contemporânea da UFRJ e autor (com Karl Schurster) do livro 'A República Sitiada' e do 'Dicionário de História Militar do Brasil'

Opinião

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E o golpe fracassou!

Mesmo com a adesão de centros do próprio poder, a intentona bolsonarista foi derrotada

Felizmente, os apelos de “patriotas” por uma “intervenção militar” foram ignorados pela cúpula do Exército – Imagem: Andressa Anholete/Getty Images/AFP
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O fato mais relevante de 2023 foi o brutal ataque à democracia ocorrido em 8 de janeiro. Talvez seja o fato mais relevante, desde já, do terceiro mandato de Lula da Silva ou ainda o fato mais relevante da História da Nova República desde o fim da ditadura. Por infelicidade. Claro, golpes de Estado – mesmo os fracassados – são sinais de fragilidade das instituições e de inconformidade com a norma constitucional democrática. Mesmo que alguns políticos, vocalizando instituições republicanas, fiquem roucos de repetir que as “instituições funcionaram”, a verdade é bem mais dolorosa.

Deu-se um ataque contínuo e organizado, partindo de vários setores da própria República, contra as instituições. Perseguiu-se o descrédito das urnas eletrônicas, do sistema eleitoral e, pior de tudo, dos tribunais superiores (TSE e STF). Seus ministros foram atacados e ameaçados. As sedes dos Três Poderes foram depredadas. Claramente, isso não faz parte do funcionamento “normal” das instituições. Mais que isso: o golpe foi anunciado, preparado e desferido, em etapas, a partir de centros do próprio Poder e, no seu ápice, amparado por instituições do Estado, seja por ação ou inação.

O “golpe” não foi apenas o 8 de Janeiro. Ele começou com as mobilizações bolsonaristas de 7 de setembro de 2021, ameaçando tribunais, ministros e juízes; prosseguiu em 30 de outubro de 2022, quando houve real ameaça em reconhecer a vontade popular expressa nas urnas, inclusive com versões de roteiros do golpe (um em posse do então ministro da Justiça e outro com o Ajudante de Ordens da Presidência); avançou com depredações e invasões de prédios públicos em 12 de dezembro 2022, quando da diplomação dos vencedores (na mais pura emulação do assalto ao Capitólio, em Washington, em 6 de janeio de 2021); e, por fim, veio o 8 de Janeiro.

Inúmeros setores da sociedade apontaram para a iminência do golpe. Fez-se o silêncio e estamparam-se rostos de incredulidade. Não era apenas a farsa da extrema-direita, coisa natural em negar a possibilidade do golpe. Ocorre que, desta vez, os bolsonaristas nem sequer negavam a possibilidade. Entidades estatais como o Gabinete de Segurança Institucional, a Agência Brasileira de Inteligência, Comandos Militares e até mesmo a Polícia Militar do Distrito Federal foram seduzidos pela possibilidade do golpe.

A reticência de meia dúzia de generais e a lucidez do governo Lula de não decretar uma GLO foram decisivas para manter as tropas aquarteladas

Na verdade, nas suas diversas etapas, tratava-se de testar as instituições, a capacidade de resistência e, o mais importante, a disposição de aderir e participar da intentona. Tratava-se, acima de tudo, de testar o Alto-Comando do Exército – Marinha já estava, então, convencida da “necessidade” do golpe e a Aeronáutica acompanharia. No entanto, no âmbito dos (normalmente) 15 generais de quatro estrelas da ativa, não havia consenso. Embora as pregações do “morismo” e suas ferramentas de lawfare fossem admitidas como a “narrativa” oficial nas Forças, as lembranças de 1964, e mais ainda, do triste fim do governo Figueiredo, em 1985 – quando, segundo a versão dominante nas Forças, os militares foram abandonados como os únicos responsáveis pelos longos anos de arbítrio, perseguições e brutais erros de gestão. Seus parceiros de primeira ordem, empresários, políticos, líderes religiosos e outros, já haviam “desembarcado” do regime desde 1979, e um deles, José ­Sarney assumia o papel de duvidoso “herói da resistência”. Assim, para os militares, “1964 Nunca Mais” não era um resumo da adesão à democracia. Tratava-se de epitáfio da traição, do abandono e desresponsibilização pelos 21 anos da ditadura civil-militar.

Assim, sem total adesão do Alto-Comando do Exército – onde pelo menos cinco generais mantinham uma inabalável postura constitucional, sofrendo o maldizer do apodo de “melancias”, verde-oliva por fora e vermelho por dentro – e na ausência de um grande evento, de força maior, que “obrigasse” a Força a “restabelecer a lei e a ordem”, não haveria golpe. Por isso, o caos e a destruição, quando o golpe toma a forma de “insurreição popular e espontânea” , deveria destruir Brasília e paralisar o governo Lula, tornando a “intervenção militar constitucional (sic!)” inevitável.

Contudo, poucos indivíduos, a exemplo do ministro da Justiça, do secretário-executivo do ministério, do secretário de Proteção ao Consumidor, o titular da Advocacia-Geral da União e um ministro do STF, então à frente do TSE, agiram rápido e desmantelaram a trama. Em vez de buscar um general para comandar uma GLO, que levaria a um estado de exceção na capital federal, aumentaria o poder de intervenção da Força a partir de uma compreensão esdrúxula de uma teoria “ahistórica” da tutela militar sobre a República, em meio de incertezas e testes de lealdade de comandantes – do Exército, do Planalto e da Guarda Presidencial – optou-se pela decretação do Estado de Defesa ancorado no 136º artigo da Constituição Federal, e não no eterno vício de socorrer-se do Artigo 142, sobre as GLOs. Com a ação rápida e segura do novo interventor federal para Brasília, Ricardo Capelli, um civil, jornalista de profissão, e a intensa cooperação do diretor-geral da Polícia Federal, ­Andrei Passos Rodrigues, o golpe não vingou. Malgrado um movimento inicial do comandante do Exército, mobilizando blindados para proteger os seus no dito “Acampamento Patriótico”, as tropas se mantiveram aquarteladas.

Tudo isso já é História. Cabe agora tirar as conclusões necessárias. •

Publicado na edição n° 1291 de CartaCapital, em 27 de dezembro de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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