Maria Rita Kehl

Opinião

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Tratamento humanizado

A reforma psiquiátrica deve muito à doutora Nise da Silveira, que optou por usar pincéis na terapia dos internos, em vez dos “picadores de gelo” empregados nas lobotomias

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Nise da Silveira.
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Em 2023, a Lei da Reforma Psiquiátrica completa 22 anos. Vale recordar uma pioneira, a doutora Nise da Silveira. Na esteira do movimento iniciado em 1961 pelo psiquiatra italiano Franco Basaglia, que transformou os antigos manicômios em comunidades terapêuticas, a doutora Nise promoveu uma revolução no Hospital do Engenho de Dentro, no Rio de Janeiro.

Em 1974, sem saber nada sobre Nise ou Basaglia, fiz um estágio do curso de Psicologia em um hospital psiquiátrico feminino da Vila Mariana, em São Paulo. O médico responsável pelos detentos – recuso-me a chamá-los de “loucos” – advertiu às alunas assustadas que tomassem cuidado, pois poderíamos ser atacadas por um deles a qualquer momento. Apesar do medo incutido em nós, não foi o que nos aconteceu.

Uma moça um pouco mais velha que eu, de cabeça raspada – prática comum para prevenir piolhos – tocou meu cabelo e disse: “Que bonito! O meu também era assim…”. Outra me pediu que botasse no correio uma carta para sua família: fora internada à força depois de um surto na rua e ninguém sabia de seu paradeiro. O enfermeiro observou que aquela mulher tinha “obsessão” por enviar a carta! E como não teria? Levei a missiva ao correio.

Eu e uma colega quisemos prolongar o estágio, conversar mais com as detentas. Sim, detentas. Se fossem “internas”, seriam tratadas com respeito. Foi uma experiência transformadora.

Em Psicose e Ambiguidade, o psicanalista Joseph Bleher aborda o tema. A ambiguidade de pessoas próximas, em quem a criança confia, pode confundi-la. Com o tempo e a repetição desse padrão de relacionamento, produz-se uma psicose. Tive uma tia que sofria de “retardo mental”. No curso de Psicologia comecei a pensar que ela seria psicótica. Minha avó a tratava com relativa liberdade e muito carinho quando estavam sozinhas ou, no máximo, na companhia da neta (eu). Mas, quando a família se reunia, ela cerceava ao máximo as atitudes estranhas de minha tia.

Uma vez, depois de uma repreensão, ela murmurou: “Amarraram a galinha no tronco da árvore, não pode andar. Uma hora Nina (nome fictício) é pato, outra hora é galinha, é porco… Não sei mais o que Nina é”. Estava no fim da faculdade e entendi que, à sua maneira, minha tia descrevia com precisão a combinação da ambiguidade da mãe com a psicose da filha.

Mais tarde atendi uma moça psicótica, filha de pais extraordinários. Livre de constrangimentos familiares, tornara-se uma pessoa sábia. A ausência da repressão permitia que ela compreendesse a vida e suas vicissitudes com muito mais sensibilidade do que nós, “os tais sãos”. Outra vez atendi um rapaz que chegou à minha casa a pé. Meu nome não estava na lista telefônica. Não havia Google nos anos 1980!

Na época, eu não sabia que no Engenho de Dentro uma psiquiatra extraordinária revolucionara o trato com os internos. “Os doentes não tinham o que fazer, andavam feito fantasmas”, observou Nise, que criou oficinas de trabalhos manuais não só para entreter os internos, mas para testá-los, comprovar suas habilidades. “Não acredito na cura pela violência”, dizia, ao criticar a prática de “conter” os psicóticos.

“Sou uma pessoa curiosa do abismo, embora tenha consciência de que o abismo às vezes seja tão profundo que eu apenas passo pelas bordas”, dizia. Certa vez, declarou a um psiquiatra: “Meu instrumento é um pincel. O seu é um picador de gelo” (referia-se ao instrumento usado para fazer lobotomias).

No lugar do “picador de gelo”, Nise ofereceu aos internos do Engenho de Dentro a possibilidade de conviver com cachorros. Percebeu que a possibilidade de cuidar de um animal – e ser cuidado por ele, como fazem os cachorros – tinha um poder curativo para os psicóticos. Um deles, que nunca falava, chegou a pedir um curativo para seu cão que machucara a pata. No filme Nise, o Coração da Loucura (2015), o diretor Roberto Berliner reproduziu a cena pungente em que um vizinho, incomodado talvez com o cheiro ou o barulho, envenenou os cachorros durante a noite. A cena é de chorar. Um dos personagens lamenta: “Se era para tirar, por que deram?”

A reforma psiquiátrica deve muito à doutora Nise. Em 1987, em São Paulo, foram criados Centros de Atenção Psicossocial, que substituíram os abomináveis “hospícios” por moradias coletivas, onde os psicóticos podiam desenvolver atividades criativas. A partir de 2001, no governo de Fernando Henrique Cardoso, os manicômios foram gradualmente extintos.

Os psicóticos estão entre nós. Tratados com respeito e com carinho, não oferecem perigo algum à sociedade. Perigosos são os psicopatas, que sentem prazer com a dor alheia. Foi o caso, por exemplo, de certo presidente da República que debochou dos doentes com falta de ar durante a pandemia de Covid-19.•

Publicado na edição n° 1257 de CartaCapital, em 03 de maio de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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