Camilo Aggio

Professor e pesquisador da Universidade Federal de Minas Gerais, PhD em Comunicação e Cultura Contemporâneas

Opinião

Sputnik V: por que tanta gente alérgica ao bolsonarismo abraçou a conspiração?

Em controvérsias e impasses desse tipo, não precisamos de teorias da conspiração

O presidente da Rússia, Vladimir Putin. Foto: Alexei Druzhinin/Sputnik/AFP
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Joseph E. Uscinski, um dos maiores especialistas teorias conspiratórias no mundo, as define da seguinte forma: explicações sobre circunstâncias e eventos do passado, do presente ou do futuro que elencam, como sua causa principal, uma conspiração. Conspiração, segundo ele, é definida pela ação de um pequeno grupo de pessoas poderosas que age em segredo para benefício próprio e contra o interesse coletivo. Mais: esse grupo busca inibir direitos, degradar instituições fundamentais e cometer fraudes em larga escala.

Atualmente, o Brasil se divide em duas categorias de pessoas: as que aderiram ou as que resolveram se resignar diante de um governo permeado por integrantes que pautam seus discursos, ações, estratégias e condutas com base em algum tipo de teoria conspiratória. Nesta semana, entretanto, não foi o conspiracionismo bolsonarista que ganhou atenção pública, mas sim a polêmica envolvendo a Anvisa e a vacina russa Sputnik V.

Como já deve ser de vasto conhecimento a essa altura, técnicos da Anvisa não aprovaram o pedido de uso emergencial do imunizante russo. Diante de um contraste entre o diagnóstico da agência e os resultados publicados por pesquisadores no prestigiado periódico Lancet, alguns especialistas indicaram que, talvez, a diferença e o problema estejam nos resultados distintos entre a condição fabril do imunizante (que foi enviada à Anvisa) e a condição de produção laboratorial mais restrita (analisada pelos autores do estudo publicado na Lancet). 

Tudo o que temos até agora nesse episódio são sombras, dúvidas e incertezas, mas um misto de desconfianças plenamente justificáveis num país que já enterrou mais de 400 mil mortos por Covid-19 se juntou a convicções ideológicas há muito inoculadas e fez com que muita gente alérgica ao bolsonarismo não tivesse dúvidas: a Sputnik V e nós fomos vítimas de uma fraude conspiratória. 

 

E eis o plot: um pequeno grupo de poderosos no governo teria coagido ou se aliado, sob segredo, a agentes da Anvisa e fraudado um laudo técnico em razão de algum tipo de divergência ideológica e interesses políticos, recusando o pedido de uso emergencial da vacina e, enfim, sequestrando nosso direito à vida, degradando uma instituição, cometendo uma imensa fraude. 

Algumas teorias conspiratórias findam por descreverem, de fato, uma conspiração real: vejam o que se especulava e o que hoje está demonstrado com fatos sobre os bastidores da Lava Jato, o impeachment de Dilma Rousseff  e prisão de Lula por exemplo. Não me parece, no entanto, ser esse o caso em relação à Anvisa e à Sputnik.

Por que uma agência aparelhada politicamente pelo bolsonarismo aprovaria uma vacina produzida por um país caricaturado ideologicamente como um inimigo comunista? Além disso, a Rússia nunca foi alvo do conspiracionismo bolsonarista. Ao contrário, na verdade. O ex-presidente americano que servia de farol à turma de Jair Bolsonaro era chegado de Putin. 

Qual a diferença do que se alega nesse caso e as justificativas apresentadas pelos bolsonaristas para explicar a razão pela qual cientistas, governos e laboratórios internacionais não aprovam o uso da hidroxicloroquina?

Respondo: nenhuma. Para os bolsonaristas, há uma grande conspiração em escala mundial, envolvendo grupos de poderosos que agem nas sombras e nos sequestram o direito à cura tão e somente para lucrarem mais com as vacinas, suprimindo um tratamento que seria muito menos oneroso para nós, principalmente para os mais pobres. 

Por que uma agência aparelhada pelo bolsonarismo aprovaria uma vacina produzida por um país caricaturado ideologicamente como um inimigo comunista?

Diante de situações delicadas, urgentes e complexas que demandam formação específica e capacitação técnica, teorias conspiratórias são apenas elementos que desorientam, geram pânico, confusão e ansiedade e, principalmente, desinformam. E não importa se algumas delas findem por estar parcial ou totalmente corretas.

Em controvérsias e impasses desse tipo, não precisamos de teorias da conspiração, precisamos de mais autoridades epistêmicas, de mais estudos, de mais evidências, de provas, de razão, demonstração e ciência. Assim como diante de forças antidemocráticas como o fascismo, precisamos é de mais democracia. De mais Estado de Direito. 

Deixemos as teorias conspiratórias no lugar em que elas mais nos divertem e onde não nos causam danos. Eu particularmente adoro as que dão conta de que Elvis Presley está vivo em alguma ilha paradisíaca ou de que registros desfocados de um objeto disforme no céu é evidência contundente de que estamos sendo visitados por vidas alienígenas. De conspiracionismos nós já estamos muito bem servidos com Bolsonaro. E o resultado não tem sido muito bacana, certo?

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