Justiça

Somos Muitas: ocupar a política e radicalizar a democracia

Ocupar a política é o principal objetivo das Muitas desde sua criação

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As Muitas surgem em março de 2015, na cidade de Belo Horizonte, inspirada em experiências latino-americanas e movimentos municipalistas pelo mundo, e na esteira de movimentos e lutas que convergem na busca por uma cidade mais justa. Com a proposta de ocupar as eleições com cidadania e ousadia, integrantes de movimentos, coletivos, partidos, ativistas independentes, cidadãos autônomos engajados e insatisfeitos com a política institucional confluíram a partir do objetivo comum de ocupar a institucionalidade e  reuniram-se em torno de uma construção horizontal, coletiva e colaborativa, em sintonia com as lutas da cidade.

Uma movimentação constituída por uma heterogênea gama de indivíduos e que rompe com as formas tradicionais de organização dos partidos políticos.

A percepção coletiva emergente no contexto pós jornadas de junho de 2013, foi de que havia um abismo entre a política feita nas ruas das cidades e a política institucional. Nossa forte identidade ativista propôs outra compreensão crítica e coletiva, na intenção de subverter a lógica monopolista partidária sobre os aspectos de recrutamento político dos candidatos, sobre o controle das campanhas eleitorais e sobre as lógicas hierárquicas institucionais.

Ocupar a política é o principal objetivo das Muitas desde sua criação, como uma ação anti-sistêmica, que se articula para atuar no sistema político para defender as lutas populares que existem fora dele. A partir daí, a primeira proposta foi concorrer às eleições municipais de 2016 e colocar em prática uma perspectiva alinhada às pautas, às lutas, aos corpos e aos desejos que emergiram na cidade nos últimos anos e que nunca tiveram protagonismo e prioridade na política institucional.

Nessas eleições, foram construídos princípios orientadores para as candidaturas populares, cidadãs e coletivas que pudessem vir a se eleger. Diretrizes como a construção coletiva de propostas e programas, ampliação da participação da cidade nas decisões dos partidos, mandatos abertos e compartilhados, tomadas de decisão coletiva, assembléias periódicas, prestação de contas em praças públicas, candidaturas com protagonismo de sujeitos das lutas sociais, corpos que expressassem a diversidade de gênero, raça, orientação sexual dos diversos territórios da cidade.

Como no Brasil não são permitidas candidaturas independentes, a aliança se deu com o Partido Socialismo e Liberdade, via Frente de Esquerda BH Socialista, composta pelo PSOL, o PCB – Partido Comunista Brasileiro, as Brigadas Populares e o MLB – Movimento de Luta nos Bairros, Vilas e Favelas. A movimentação apresentou à cidade 12 candidatas a vereadoras, que representavam com seus corpos políticos, as lutas que nos atravessam.

As mulheres, as pessoas negras, os povos indígenas, as pessoas LGBTIQs, a luta pelo direito à cidade, pelos animais e verdes, antiprisional e pela legalização das drogas, as juventudes e o povo da cultura. As candidatas foram Avelin Buniacá Kambiwá, primeira candidata indígena de Belo Horizonte, Bella Gonçalves, Cida Falabella, Cristal Lopez, primeira candidata transexual negra, Dário de Moura, Ed Marte, Fred Buriti, Marimar, Nana Oliveira, Polly do Amaral, Áurea Carolina e eu que assino este texto, Dú Pente.

Na campanha, a proposição foi de uma outra política possível, uma política de amor, feminista e antirracista, baseada na confluência máxima entre forças do campo progressista, na diversidade, na representatividade, na transparência, na busca pelo bem comum e na radicalização da democracia, na desconstrução de privilégios de toda ordem, ideias que se consolidaram ao longo da campanha eleitoral em 2016 e foram protocoladas em cartório pelas candidatas, reiterando o compromisso público com essa agenda.

Em uma eleição que em todo o Brasil foi marcada pelo discurso de rejeição à política, fizemos a campanha coletiva com poucos recursos financeiros, doados por pessoas comuns que nos apoiaram por meio de um financiamento coletivo e também de um leilão de arte realizado com trabalhos de artistas da cidade, o que se tornou a principal fonte de arrecadação da campanha. Doação de tempo e habilidades foram a grande força da campanha coletiva, advindas do trabalho voluntário, realizado de forma generosa pelo engajamento de centenas de pessoas, em uma construção que se firmou com o lema “votou em uma, votou em todas”.

Às vésperas das eleições municipais, éramos centenas de pessoas nas ruas e nas redes. Assim, o sucesso eleitoral da campanha coletiva veio pela expressiva votação que as 12 candidatas obtiveram, que juntas somaram o total de 35.615 votos válidos, o que elegeu as vereadoras Cida Falabella com 3.454 votos e Áurea Carolina, a mulher mais bem votada da história da capital mineira, com 17.420 votos.

Áurea Carolina: mulher e negra, ela foi a mais votada na capital mineira, quebrando paradigmas da política brasileira

Importante ressaltar que, além dos aspectos inovadores na linguagem, estética, plataforma, e baixos recursos financeiros, alguns fatores externos favoreceram o contexto para que a experimentação política, a partir da campanha coletiva “votou em uma,  votou em todas” alcançasse o sucesso eleitoral, tais como: mudanças na legislação eleitoral proibindo o financiando empresarial de campanha, a popularização do papel das redes sociais nas eleições, a descrença do eleitorado nos partidos, nas instituições e nos políticos profissionais, o que resultou em alto número de indecisos e de votos nulos e brancos. Em contraposição, reduziu-se o tempo de campanha de 90 para 45 dias, prejudicando candidatos com poucos recursos.

Desde sempre, entendemos que o mandato das duas vereadoras seria um só, compartilhado, com equipe comum trabalhando em conjunto, em um espaço físico sem divisórias. Nascia, assim, a Gabinetona, a expressão das Muitas na institucionalidade e, com ela, uma nova experiência de ocupação institucional, com pessoas negras, indígenas, mulheres, LGBTIQs. A terceira candidata mais votada de nossa campanha, Bella Gonçalves, foi convidada para uma experiência inédita no país de covereança. 

Em nosso mandato coletivo, aberto e popular na Câmara Municipal de Belo Horizonte, chamado “Gabinetona”, estabelecemos canais diretos de participação popular, como os LabPops (Laboratórios Populares de Leis), oficinas temáticas para qualificar nossa atuação parlamentar tanto na incidência sobre projetos de lei em tramitação, quanto na proposição de novos projetos, e outros espaços de diálogo e formulação direta sobre o mandato. A Gabinetona também é muito atuante junto aos movimentos sociais da cidade, vocalizando lutas populares, auxiliando no acesso aos mecanismos institucionais e colaborando com vitórias significativas do campo progressista.

Em 2017, a movimentação contribui para a criação da rede Ocupa Política, um movimento suprapartidário de ocupação de cargos legislativos em todo o Brasil e que reúne, além das Muitas, os coletivos Bancada Ativista (SP), Chama (RJ) e Agora é com a Gente (PE).

No ano seguinte, nas eleições nacionais de 2018, as Muitas apresentam um novo conjunto de candidatas, também em uma campanha coletiva, realizada com poucos recursos e expressando lutas da cidade e de Minas Gerais. Dessa vez, Áurea Carolina, Leandrinha Du Arte, Jorgetânia Ferreira, Bruno Cardoso e Sandra Silva Quilombola, como nomes a deputadas federais, e Rafa Tcha Tcha, Kênia Ribeiro, Dário de Moura, Juhlia Santos, Andréia de Jesus, Polly do Amaral e Gustavo Ribeiro a deputadas estaduais. Conquistamos uma vaga na Câmara dos Deputados, com Áurea Carolina, uma na Assembleia Legislativa de Minas Gerais, com Andréia de Jesus, e seguimos com duas vagas na Câmara Municipal, agora com Bella Gonçalves oficialmente como vereadora ao lado de Cida Falabella.

Enfrentando a subrepresentação das maiorias sociais negras e femininas nas casas legislativas, o perfil de recrutamento branco e masculino e outras barreiras nas estruturas partidárias, nossa ação política segue na contramão do sistema vigente. Diante de um governo federal macabro, da intensificação da agenda moralista e do projeto ultraliberal, que avança sobre direitos conquistados e sobre a vida e a dignidade de grupos historicamente vulnerabilizados, da supressão de processos democráticos e da instabilidade econômica global, sobretudo na América Latina, eleger mulheres e negras, ampliando a atuação da Gabinetona expandida em um mandato coletivo em três esferas que atua baseado pelas lutas populares, aponta para outras práticas políticas. Nós somos Muitas, seguimos juntas e em resistência por outra cultura política, que seja realmente diversa e democrática!

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