Aldo Fornazieri

Cientista político, autor de 'Liderança e Poder'

Opinião

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Sob a égide do medo

A esperança sucumbiu nas eleições deste ano. É o temor que predomina nos dois polos principais da disputa: as campanhas de Bolsonaro e de Lula

Sob a égide do medo
Sob a égide do medo
Lula e Jair Bolsonaro. Fotos: Ricardo Stuckert e Albari Rosa/AFP
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Medo e esperança, assim como força e consenso, constituem um dos pares antinômicos mais consagrados da atividade política e do exercício do poder. Medo e esperança, por sinal, são dois meios excepcionais de interação humana que visam constituir e exercer ralações de poder. O grande líder político é aquele que sabe usar com maestria e com arte os múltiplos pares antinômicos inerentes ao jogo político e ao jogo do poder. O líder astucioso é aquele que gera medo intencionalmente e, ao mesmo tempo, o supera com as promessas de solução e com a esperança de uma vida melhor. No caso do governante, com medidas práticas e soluções para os problemas.

Alguns analistas chamaram atenção para o fato de que as eleições de 2022 são marcadas pelo medo. O medo está presente em todas as eleições como meio de disputa e, a rigor, na atividade política em geral. O problema das eleições de 2022 é que o jogo do par antinômico praticamente não existe. Tornou-se um jogo unilateral de um predomínio quase absoluto do medo. A esperança, nos seus pálidos aparecimentos, vem recoberta pela capa do medo. O medo predomina nos dois polos principais da disputa: as campanhas de Bolsonaro e de Lula.

Bolsonaro tem um evidente e quase paranoico medo de perder. Teme enfrentar não só as consequências políticas, mas também jurídicas da derrota. Esse medo o faz propagar medo: medo do comunismo, da esquerda, da destruição da religião e da família, de Deus, da pátria etc. Gera um medo que produz ódio, que chega ao limiar da violência.

A estratégia de Bolsonaro consiste mais em identificar e atacar inimigos do que apresentar propostas para a solução de problemas sociais e um programa para governar o Brasil. Com esse foco, não tem como gerar esperança orientada para o futuro. A esperança que ele gera é a de evitar o “mal” e, se o “mal” tem a face do inimigo, então a esperança bolsonarista vem armada com a bandeira da mentira e com a gadanha da morte.

Toda a sorte de degradações civilizatórias que Bolsonaro praticou em seu governo – insensibilidade com a dor dos vivos, deboche dos mortos, machismo, misoginia, racismo, preconceitos, autoritarismo, loas às armas, à violência e à tortura, promessas de golpe – são máscaras amedrontadoras que não conseguem esconder a vontade de morte. A expressão “todos nós vamos morrer um dia”, dos trágicos momentos agudos da pandemia, revela esta pulsão terrível de morte que povoa a alma de Bolsonaro, com o seu olhar desértico de emoções empáticas.

Os eleitores e ativistas democratas e progressistas de esquerda que se articulam em torno da campanha de Lula (e das demais candidaturas) também estão sob a égide do medo: medo da continuidade de um presidente extremista, medo do fascismo, do golpe e do fim da democracia, medo da continuidade da tragédia social e medo do segundo turno.

O conteúdo geral das três principais campanhas opositoras é mais reconstrutivo do que propositor de um novo momento para o Brasil. O conteúdo geral da campanha de Lula volta-se mais para o que já foi feito, para um passado que deu certo, do que para a inovação de um novo futuro. A cautela domina a ousadia. A tensão domina a empolgação. O medo recobre a esperança. É como se a violência estivesse emboscada à espera de uma fagulha, de um estampido.

Vivemos em tempos nos quais as campanhas eleitorais perderam a alegria da celebração democrática. Os eleitores permanecem aquartelados na rispidez fria das redes sociais. Em parte, isto se deve ao fato de que, já há alguns anos, os progressistas e as esquerdas perderam as ruas. A antessala da campanha eleitoral foi marcada pela desmobilização. A apatia política, agravada pela pandemia, aprofundou o isolamento social e disseminou o medo no ativismo e na militância, enquanto os líderes se esmeravam nas lives no conforto de seus lares.

Assim, o engajamento primaveril do colorido das bandeiras empalideceu. As campanhas são tocadas por pequenos exércitos de marqueteiros e de burocratas dos partidos que mais cingem a criatividade dos candidatos e o alarido da militância do que permitem ondas anímicas de encantamentos que promovem os movimentos decisórios dos votos dos eleitores. As propostas se reduziram quase só a referências às bocas e aos bolsos. A política perdeu o encanto, já que perdeu o espírito e a imaginação, os fomentos da liberdade e da criatividade. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1226 DE CARTACAPITAL, EM 21 DE SETEMBRO DE 2022.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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