Fábio Kerche

Doutor em Ciência Política pela USP e professor da Unirio. Foi pesquisador visitante na New York University e na American University. Foi pesquisador titular da Fundação Casa de Rui Barbosa e é autor, entre diversas publicações, do livro 'A Política no Banco dos Réus: a Operação Lava Jato e a erosão da democracia no Brasil', escrito em parceria com Marjorie Marona

Marjorie Marona

Professora da UFMG, coordenadora do Observatório da Justiça no Brasil e na América Latina e pesquisadora do INCT IDDC.

Opinião

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Só justiça, nada mais

Há um movimento claro para despolitizar o Judiciário e reforçar a autoridade do STF

Imagem: Fellipe Sampaio/STF
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Poucos dias após a apertada vitória nas eleições presidenciais, Lula visitou o Supremo Tribunal Federal. Cercado por dez dos 11 ministros – Barroso estava ausente por motivos pessoais –, o presidente eleito sinalizava que ­eventuais mágoas em relação à postura da Corte, no mínimo leniente com a Lava Jato, se não completamente dissipadas, seriam removidas do caminho de reconstrução de uma relação harmoniosa entre os Poderes. Diferentemente do derrotado Bolsonaro, que ostentava uma agenda de enfrentamento à democracia e à Constituição, o novo presidente sinalizava a pretensão de fortalecer um dos pilares de qualquer democracia que se preze: a independência judicial. O gesto, fundamental em um contexto em que Cortes constitucionais têm sido alvo de ataques antidemocráticos por parte de líderes eleitos de tendências autocráticas, confirmava a posição diametralmente oposta do governo brasileiro, não apenas em relação ao seu antecessor, como em face das experiências internacionais que arrebatam Polônia, Turquia, Venezuela e Israel.

Passados cem dias da posse, o STF, zeloso do papel que desempenha na construção da governabilidade, tomou importantes decisões: autorizou o pagamento do Bolsa Família fora do teto, derrubou o orçamento secreto, reviu liminarmente a Lei das Estatais, validou as novas regras de restrição ao porte de armas, debruçou-se sobre questões de impostos… Ainda afinado com o governo, o Supremo assumiu posição firme e célere em relação aos atos antidemocráticos de 8 de janeiro, quando centenas foram presos depois de invadir e depredar os prédios da Praça dos Três Poderes. Até mesmo o procurador-geral de Bolsonaro, Augusto Aras, ofereceu denúncias por associação criminosa armada, abolição violenta do Estado Democrático de Direito, danos contra o patrimônio, incitação ao crime por provação de animosidade entre as Forças Armadas e os Poderes Constitucionais, verdadeiro cavalo de pau em sua performance.

Na esteira das acusações de supostos maus-tratos aos detidos – ironia para quem desdenha sistematicamente dos direitos humanos –, a ministra Rosa ­Weber visitou os presídios onde se encontravam os golpistas, dissipando o burburinho fantasioso sobre tortura e perseguição política. O presidente Lula caminhou de braços dados com Geraldo ­Alckmin, ministros e governadores em direção ao STF para apresentar sua solidariedade. Indicava, sobretudo, que o alvo dos ataques terroristas não era somente o novo governo, mas a própria democracia. A tarefa de evitar a escalada de atos golpistas não cabe somente ao Executivo. Demanda engajamento do Congresso Nacional, do Ministério Público, das forças policiais no nível federal e nos estados, sob o comando dos governadores e, evidentemente, do Judiciário, em especial o STF.

Não por acaso, parcela significativa da atenção do noticiário político está voltada para as relações que Lula será capaz de estabelecer com o sistema de Justiça, depois de haver sido açoitado pela Lava Jato, em um ambiente no qual é preciso trabalhar pela reconstrução da autoridade do STF como condição para a retomada da normalidade. As futuras indicações que o presidente tem a incumbência de realizar para as vagas abertas no Supremo ao longo de seu mandato são objeto de especulação diária pela mídia. A imprensa apresenta candidatos e lhes atribui mais ou menos chances baseando-se em torcida e muito lobby. O debate público ora clama por um tribunal mais representativo, acenando com justiça para a necessidade de que se indique uma mulher negra, ora ressalva as preocupações com governabilidade, dando peso à trajetória profissional do/a escolhido/a. Ecoa, no que parece ser mais consensual, a apreensão com alternativas que possam figurar ímpetos de politização aguda da Corte.

A reconstrução do País passa pelo compromisso com a ordem constitucional

A polêmica sobre as indicações presidenciais extrapola o STF. Aras encerra seu mandato em setembro. Não obstante sua tentativa de aproximação com o governo Lula, e de haver angariado apoios de peso, como os de Davi Alcolumbre e Arthur Lira, é improvável que se mantenha à frente da Procuradoria-Geral da República. Certa é a disposição de Lula de retomar o modelo constitucional de indicação, rompendo com a trajetória que ele mesmo havia estabelecido de observar a lista tríplice elaborada pela Associação Nacional dos Procuradores da República. A avaliação é a de que a prática incentivou o corporativismo e deteriorou-se em um mecanismo de politização do Judiciário, viabilizando os excessos da Lava Jato. Lula aprendeu a lição: o viés punitivista de Rodrigo Janot foi tão pernicioso quanto o adesismo de Aras ao bolsonarismo autoritário.

Lula valoriza a relação republicana com o sistema de Justiça. Dentre seus ministros, os que estão incumbidos da articulação amiúde com o Judiciário, o Ministério Público e a Polícia Federal são proeminentes figuras. Jorge Messias, advogado-geral da União, ganhou a confiança do presidente por sua atuação leal ao longo dos anos. Flávio Dino, ex-governador do Maranhão, é frequentemente lembrado como um possível sucessor do presidente em eleições futuras. À frente do Ministério da Justiça e Segurança Pública, tem conduzido as articulações com o Congresso para aprovação de medidas que intensificam punições para indivíduos, empresas e plataformas digitais que atentarem contra a democracia. Em outra frente, promove mudanças estruturais na Polícia Rodoviária Federal com o objetivo de retomar o foco da corporação às atividades-fim, revertendo o processo de instrumentalização da instituição promovido pelo governo Bolsonaro.

Os esforços de reversão do aparelhamento das forças de segurança estendem-se à Polícia Federal. A tentativa rasteira de instrumentalização do “arroubo de humanidade” que levou o presidente a externalizar sentimentos negativos em relação a Sergio Moro, às vésperas da desarticulação de um plano do PCC para sequestrar e matar o ex-juiz, é cortina de fumaça. O fato é que, sob o comando de Dino, a PF, reforçada ao longo dos governos anteriores do PT, voltou a colocar a capacidade investigativa que adquiriu a serviço de uma atuação impessoal, conforme se viu justamente pela condução da Operação Sequaz.

Há muito o que reconstruir no Brasil. A retomada da normalidade institucional é, no entanto, condição de possibilidade para avançar e passa por esforços de despolitização do sistema de Justiça e reforço da autoridade do STF. Do Planalto, nestes cem primeiros dias, o que se viu foi disposição e diálogo consciente de que a tarefa de aprofundamento da democracia, com desenvolvimento econômico e social, traz embutido o inarredável compromisso com a ordem constitucional. •


*Fábio Kerche é professor de Ciência Política da Universidade Federal do Estado do Rio de Janeiro (Unirio); Marjorie Marona é professora de Ciência Política da Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) e colunista de CartaCapital.

Publicado na edição n° 1254 de CartaCapital, em 12 de abril de 2023.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Só justiça, nada mais’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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