Justiça

Se Deus é um só, a vítima é uma “coletiva”

Morosidade em casos como esse contrasta com velocidade na qual vidas das vítimas são destroçadas pelo julgamento público

Foto: Marcelo Camargo/EBC
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Foi ao ar no último domingo no programa Fantástico da Rede Globo mais uma reportagem investigativa sobre João Teixeira de Farias. Desta vez, mediante informações que remontam mais de quarenta anos, pelo que foi noticiado em longa matéria, para além de atividades mediúnicas, a vida deste João, que ficou conhecido como “de Deus”, teria sido também dedicada ao suposto cometimento de crimes que incluiriam assassinatos, contrabando de material radioativo, dentre outros.

Não são realmente poucos os delitos pelos quais o ex-médium é investigado. Por outro lado, não é meu interesse nestas linhas, pesar ou optar por versões sobre esses novos (ou melhor, antigos) fatos que têm chegado ao conhecimento geral pela mídia.

Tampouco desejo abordar seus possíveis (ou inexistentes) reflexos em termos processuais. Para tanto o Ministério Público tem cumprido seu papel e o acusado, por sua vez, encontra-se muito bem assessorado em sua defesa.

O que me impulsiona a escrever são inquietações sobre o tempo, o silêncio e a dor compartilhada de vítimas que existem somente em um singular plural.

É pouco mais de três meses o tempo que leva desde as primeiras notícias públicas contra João de Deus por crimes contra a dignidade sexual, sua prisão e a emergência de centenas de depoimentos de mulheres que romperam a mudez para falar de agonias comuns.

Para muitos o tempo pode parecer curto. O silêncio das vítimas, rompido praticamente de uma única vez, motivo de desconfiança. E a palavra da mulher (ainda que às centenas) pouco para ser merecedora de crédito no processo penal.  

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Mulher se apoia sobre quadro em centro Dom Inácio de Loyola. Foto: Marcelo Camargo/EBC

Entretanto, de todos os crimes – e aqui não vai nenhum apreço, nem mesmo inconsciente, pela celeridade processual que viola direitos e garantias do acusado – é possível dizer que aqueles que atingem a dignidade sexual são os mesmos nos quais o tempo opera como o maior fator destruição da figura pública da vítima e de suas relações familiares e sociais.

Em regra, em todos os casos a envolver esses delitos, poucos meses são necessários para que as vidas das vítimas sejam destroçadas pelo julgamento público, pela incompreensão das famílias, pela culpa que (como mulheres que somos) nos foi incutida pela cultura de que sempre, de algum modo, somos responsáveis pelas violências que sofremos.

É o tempo no qual casamentos são desfeitos por maridos que consideram a vítima uma traidora. A hora em que a ofendida passa a ser xingada, ou até agredida fisicamente, por seu companheiro, seus familiares e/ou sua vizinhança. É o exato momento em que a mulher começa a solidificar em seu interior que tudo por ter sido sua própria culpa.

Repito: não se trata de levantar uma bandeira punitiva (e populista) por uma justiça tipo fast food. De outro lado, contudo, também reitero: a história de vida de uma vítima de um crime sexual nunca se resume ao fato, pois ela, no mais das vezes, é outra bem pior após o ocorrido e com o passar do tempo se este se arrasta.

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O rompimento do silêncio nunca é fácil em casos de estupro ou outro tipo de crime contra a dignidade sexual. Basta lembrar que este tipo de delito é o de maior subnotificação no mundo.

E, por todas as razões que acima citei, e que constituem somente uma ínfima parte de todo o processo de revitimização, jamais é simples para uma mulher levar até o conhecimento da autoridade judiciária a violação sofrida.

Por outro lado, em casos como o de João de Deus, tal como o do médico Roger Abdelmassih no Brasil, ou mesmo dos que vieram à tona e impulsionaram o movimento que ficou conhecido como #metoo no exterior, a dor das vítimas nunca é só sua. Ela é sempre compartilhada. Sendo justamente o viver coletivo desta dor que possibilita a todas, quando uma rompe o silêncio, compreenderem-se também como uma vítima na situação de violência que sofreram.

Vilma Piedade em seu livro Dororidade nos diz que mais do que uma solidariedade entre mulheres que passou a ser conhecida pelo termo sororidade, o que de fato nos une são as dores que compartilhamos. É o choro comum das mães que perderam seus filhos em chacinas em comunidades pobres deste país que as une na luta por justiça. É o nó na garganta que as mulheres negras carregam em razão da discriminação e do preconceito que as faz romper obstáculos.

Digo eu agora: é na insistência e persistência de cada vítima de um crime sexual em casos onde, algumas vezes ela sequer assim se percebia até tomar conhecimento de que não era a única, que se sustenta a fortaleza de seguir adiante em um procedimento judicial que também muitas vezes é parte do sistema de revitimização.

Em processos como o de João de Deus, respeitada a necessidade de que cada fato seja deduzido na respectiva denúncia pelo Ministério Público, a vítima pelo tempo do processo e as consequências deste, pelo silêncio rompido em um contexto de medo e insegurança e pela dororidade que a une à outra, e à outra, e à outra, e a outras tantas, nas quais se sustenta sua narrativa, nunca poderá ser considerada como isolada, nem mesmo na relação processual.

A vítima em casos como esse é uma “coletiva”. E compreendê-la de modo diverso faz parte de uma violência epistemológica que só aparentemente encontra amparo legal. Mas isso já é tema para um outro artigo.

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