Saudade do tempo em que eu vestia a roupa mais bonita para tomar vacina

'Um tempo perdido em algum lugar do passado, já que futuro parece não haver', escreve Luana Tolentino

Foto: Agência Brasil

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Durante minha infância, era muito comum ver pessoas com dificuldade de se locomover em razão de deficiências principalmente nas pernas. Aprendi que não deveria ficar olhando para elas e muito menos chamá-las de “aleijadas”, sob o risco de levar um safanão. Perguntar o motivo de serem diferentes de mim nem pensar. Somente mais tarde descobri que eram vítimas da poliomielite, doença que marcou várias gerações.

 

 

Por causa dos surtos de paralisia infantil, a partir da década de 1980, o Ministério da Saúde passou a promover uma campanha nacional de vacinação. Segundo a pesquisadora Dilene Raimundo do Nascimento, da Fundação Oswaldo Cruz, “iniciou-se um processo intenso de negociação política entre o Ministério da Saúde e os estados, no nível de governadores e secretários de Saúde. O ministro da Saúde viajou para todos os estados para conseguir que os governadores priorizassem a campanha contra a poliomielite. Era imprescindível que os estados se comprometessem com essa estratégia de Dias Nacionais de Vacinação, porque a execução estaria ao seu encargo. O Ministério da Saúde entraria com os recursos materiais necessários, inclusive o suprimento de vacinas, e o apoio logístico”.

Desse modo, por meio do rádio e da televisão, sabíamos que no Dia Nacional da Vacinação, ocorrido sempre em um sábado escolhido pelo Ministério da Saúde, todas as crianças deveriam ser vacinadas. A campanha contava ainda com a participação de artistas de renome, como a apresentadora Xuxa, que dizia o seguinte bordão na TV: “Gotinha, gotinha e tchau, tchau, paralisia infantil”.


Para mim, era um dia de grande expectativa e ansiedade. Dia de colocar a melhor roupa, fazer um penteado e seguir em companhia da minha avó para uma escola, igreja ou centro de saúde em que as vacinas eram aplicadas. Havia ainda a expectativa de ver de perto o Zé Gotinha, personagem criado especialmente para a ocasião, ganhar balas e pirulitos. Uma verdadeira festa. A poliomielite foi erradicada no Brasil em 1994.

Em meados dos anos 1990, houve a campanha contra a tuberculose. Lembro que minhas amigas e eu ficávamos observando a cicatrização do braço após recebermos a vacina. Era como se tivéssemos uma tatuagem que precisava ser exibida. Em função disso, no colégio, passamos a usar quase todos os dias a blusa da aula de educação física, que não tinha mangas. Coisa de adolescentes. Doença que tem entre as principais vítimas os mais pobres, na última década, o número de mortes em decorrência da tuberculose caiu cerca de 8%.

Em 2009, o mundo se viu assombrado com a chegada do H1N1, que no intervalo de 12 meses matou mais de 2.000 pessoas no Brasil. No ano seguinte, teve início a vacinação. Em 90 dias, 80 milhões de pessoas foram vacinadas. Entre o grupo prioritário estavam indígenas, profissionais da saúde, gestantes, doentes crônicos, crianças de seis meses a dois anos e, vejam só, profissionais da educação das redes públicas e privadas. No período de vacinação, agentes de saúde iam até as escolas. Sempre tomei a vacina no meu local de trabalho. Como se pode ver, já houve momentos em que professores foram tratados com dignidade nesse país.

Há pouco mais de dois meses, me emocionei com a chegada da vacina contra a Covid-19, que já deixou mais de 260 mil famílias enlutadas. Com o correr dos dias, a esperança trazida pela enfermeira Mônica Calazans, primeira pessoa a ser vacinada no território brasileiro, vai dando lugar a angústia e incerteza, uma vez que, até o momento, menos de 4% da população recebeu as duas doses necessárias para a imunização. Enquanto isso, o vírus avança, transmuta, mata de maneira implacável. No lugar de uma coordenação nacional, mentiras, incompetência, descaso e desprezo pela vida humana.

Como se não bastasse, ainda somos obrigados a presenciar a indigência moral dos que, ao usar o poder e a influência política para receber a vacina antes de quem realmente tem direito, fazem valer o ditado “farinha pouca, meu pirão primeiro”. Em entrevista recente, o doutor Dráuzio Varella disse que, nesse momento, nem mesmo a vacina nos salva mais.

Sendo assim, só me resta sentir saudade do tempo em que eu vestia a minha roupa mais bonita para tomar vacina. Um tempo perdido em algum lugar do passado, já que futuro parece não haver.

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