Alberto Villas

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Jornalista e escritor, edita a newsletter 'O Sol' e está escrevendo o livro 'O ano em que você nasceu'

Opinião

Saudade de Beirute

Saudade das suas ruas irregulares, seus restaurantes populares, desses com mesa de toalha xadrez e um vasinho de flor de plástico decorando

Foto: Arquivo Pessoal/Alberto Villas
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Só mesmo um jovem cabeludo, pouco mais de vinte anos, poderia ter uma ideia dessas. Sair do exílio em Paris e ir até a capital do Líbano, por terra.

Tinha acabado de ler Sur le chemin des glasses, de Werner Herzog, onde ele conta que, assim que soube que sua amiga estava doente terminal, resolveu ir à pé de Munique, onde morava, até Paris, para vê-la. E foi. Mas a minha ideia não era ir a pé.

E fui.

Atravessei a França de trem, parte da Alemanha de ônibus, desci toda a bota italiana espremido num vagão da Trinitária, peguei um navio em Bridsi até a Grécia e fui cortando países que nem existem mais no mapa. Alguns comunistas, com aqueles outdoors enormes no meio do caminho, glorificando seus heróis.

Atravessei a Turquia de ônibus, entrei na Síria e acabei chegando ao aeroporto internacional de Beirute de avião, num desses voos que custam mais barato que um Uber daqui de casa, na Lapa, até o Morumbi.

Hoje eu acordei com saudade de Beirute.

Das suas ruas irregulares, seus restaurantes populares, desses com mesa de toalha xadrez e um vasinho de flor de plástico decorando.

Os quintais transbordando de árvores frutíferas, coloridos de damascos, ameixas, peras e muitas uvas. O vira-latas perambulando nas periferias, os vendedores de tapetes lindos e caríssimos, o quibe de carne de carneiro, os taxis comuns buzinando procurando fregueses.

Os homens de mãos dadas andando pelas ruas, dando beijinhos ao se cumprimentar, coisa que não existia por aqui naqueles anos 1970.

Os soldados espalhados pela cidade, escondidos atrás de sacos de areia, só nos assustaram nos primeiros dias. Rapidinho nos acostumamos com eles.

Beirute estava em pé de guerra, os vendedores gritavam as manchetes do L’Orient-Le Jour que assustavam, bem como como o barulho de jatos na madrugada, no céu que, aparentemente, não nos protegia.

Sim, corri risco, corri perigo viajando por todas as cidades do minúsculo país. Quando a tarde caía, voltava para minha Beirute querida para assistir ao espetáculo do por do sol, debaixo de um calor de dar inveja aos camelos do Saara.

Saudade do suco de romã, da coalhada seca, do pão redondo que as mulheres faziam nas ruas, assados em pedras quentes.

O trânsito caótico, os automóveis amassados de tanto chega pra lá, o mercado com cheiro de curry, de pimenta do reino, de salsinha.

Saudade daquele comércio zoneado que vendia sandálias de dedo, pneus, burcas, espiral mata-mosca, tecidos, baldes, vassouras, colchonetes, cotonetes, camisas floridas, um pouco de tudo.

Sim, acordei com saudade de Beirute e a única lembrança que tenho de lá é um exemplar da revisa Luluzinha que comprei na rua Hamra, um dia antes de deixar o país.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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