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Santos do pau oco

A falsa moralidade dos agentes da Lava Jato foi descortinada pelo CNJ, a apontar ilegalidades nos acordos firmados com os investigados

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O ex-deputado federal Deltan Dallagnol. Foto: Lula Marques/Agência Brasil
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Na sexta-feira 15, o Conselho Nacional de Justiça divulgou uma síntese do relatório decorrente da correição extraordinária a que foi submetida a 13ª Vara Federal de Curitiba, responsável pela Lava Jato. A fiscalização foi instaurada em maio, após mais de 30 reclamações contra juí­zes que atuaram nos processos relacionados à operação.

Apesar do pouco detalhamento dessa divulgação preliminar, o documento traz um panorama estarrecedor sobre a forma como foram firmados os acordos de colaboração e leniência com os acusados das investigações da Lava Jato e sobre a “gestão caótica”, como mencionado no próprio texto, dos ativos recuperados. Os indícios de que tenha havido conluio para direcionamento desses valores a uma possível fundação – a tal Fundação Lava Jato – e desvios na destinação desses recursos são muitos.

O relatório elenca, de saída, uma série de irregularidades na homologação dos acordos, que, segundo apurado, foram realizados sem as cautelas básicas que a lei determina, como, por exemplo, a presença de informações relacionadas aos processos, existência de documentos produzidos pela defesa técnica e verificação de voluntariedade do acusado, além da observância de que seus direitos fundamentais foram garantidos.

Outro ponto que preocupa é a falta de transparência em relação aos métodos adotados para estipular os valores das multas e definir as vítimas. Descobriu-se, inclusive, que em acordos firmados pelo Ministério Público Federal com a Odebrecht e com a Braskem, a definição de valores obedeceu a critérios de autoridades estrangeiras. As tratativas eram feitas pelos agentes de primeira instância, e não via Ministério da Justiça, em negociação direta – o que é uma evidente ilegalidade. O Estado brasileiro, inacreditavelmente, não foi apresentado como vítima, ao contrário do ocorrido com os Estados suíço e norte-americano.

O aspecto que mais chama atenção no relatório – e não só pela extrema gravidade, mas sobretudo pela vergonhosa contradição entre discurso e prática, quando pensamos na alardeada propaganda de que as autoridades da Lava Jato combatiam a corrupção e lutavam pela nobre causa da recuperação do dinheiro público – é a descoberta de que havia um conluio envolvendo seus artífices para destinar valores à Petrobras, no Brasil, a fim de permitir que a empresa pagasse acordos no exterior, possivelmente com vistas a que esse dinheiro depois retornasse à fundação.

Entre 2015 e 2018, período em que era investigada nos EUA, a estatal recebeu 2,1 bilhões de reais. Essa triangulação fica ainda mais escandalosa quando constatado, no relatório, que apurações cíveis instauradas no âmbito da força-tarefa, referentes aos prejuízos causados pela Petrobras aos acionistas, foram arquivadas por prescrição. Outra irregularidade demonstrada foi o fato de ter havido repasse de valores depositados judicialmente e de bens apreendidos tanto à Petrobras quanto a outras empresas, antes mesmo de sentença com trânsito em julgado.

O conjunto da obra das ilegalidades cometidas por aqueles que passaram anos bradando contra a má gestão do dinheiro público é desconcertante. Cumprida essa primeira etapa da correição, é preciso agora que sejam averiguadas com profundidade a destinação dos recursos e a participação indevida de Estados estrangeiros na gestão do dinheiro e definição de valores de multas, o que configura uma ofensa grave à nossa soberania e uma interferência inadmissível na jurisdição brasileira, o que, a meu ver, é a mais grave de todas as ilicitudes praticadas.

A gestão imoral de bilhões de reais precisa ser amplamente investigada por um conjunto de órgãos que envolva não apenas o CNJ, mas também o Ministério da Justiça, a Advocacia-Geral da União e Controladoria-Geral da União, o Ministério Público Federal, o Tribunal de Contas da União, a Polícia Federal e a Receita Federal, a fim de determinar a extensão dos desvios e os prejuízos causados ao Estado brasileiro.

Mais que isso, é essencial propor uma normatividade que regule e torne muito claros os critérios para estabelecimento de multas e todo o fluxo de dinheiro recuperado em acordos de leniência, sobretudo de sua destinação, por meio de gestão transparente e responsável. Por fim, a falsa moralidade de agentes da investigação que por tanto tempo foi apontada pela imprensa como a mais relevante do País e cujas perversidades já estavam amplamente demonstradas fica definitivamente descortinada. •

Publicado na edição n° 1278 de CartaCapital, em 27 de setembro de 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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