José Eduardo Fernandes Giraudo

Diplomata, advogado formado pela UFRGS, ex-professor da UnB e do CEUB

Tarso Genro

Ex-Prefeito de Porto Alegre, Ministro da Justiça e Governador do Rio Grande do Sul. Doutor “honoris causa” da Universidade Federal de Pelotas.

Opinião

Resta derrotar no Brasil o governo da morte, pela morte e para a morte

Fossem a saúde e o bem-estar do povo brasileiro uma prioridade, não teríamos passado pela tragédia e pelo vexame que passamos na pandemia

O presidente Jair Bolsonaro. Foto: AFP
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Os desafios colocados pelo combate à pandemia da Covid-19 em escala mundial permitem, à luz de recentes desdobramentos da política latino-americana, como a derrota da extrema-direita cripto-fascista no Peru, em Honduras e no Chile, que façamos uma reflexão sobre o lugar – atual e desejado – do Brasil em suas relações com a África e com seu contexto latino-americano, em busca de um desenvolvimento socialmente justo e da plena afirmação da democracia.

No início de dezembro, o escritor moçambicano Mia Couto classificou como “um novo apartheid” o fechamento das fronteiras europeias a residentes nos países da África austral, em decorrência da descoberta da variante Ômicron do vírus da Covid-19. A ele juntou-se o escritor angolano José Eduardo Agualusa, ambos havendo assinado o artigo “Duas Pandemias?”, que teve grande repercussão nas redes sociais.

O artigo apontava para a hipocrisia dos países ricos, que, ao invés de promover a distribuição equitativa das vacinas, as preferiram acumular, em quantidades excessivas, esvaziando mecanismos como o “COVAX”, idealizado no âmbito das Nações Unidas para suprir o déficit de imunizantes nos países de baixa renda.

A avidez e o egoísmo dos países centrais os levaram inclusive a protagonizar atos de verdadeira pirataria, como o sequestro de carregamentos de vacinas destinados a países terceiros; e a envolver-se em disputas absurdas como a que opôs os governos do Reino Unido e os de alguns países da União Europeia sobre a primazia no acesso à produção local de vacinas.

Além disso, os países detentores de tecnologia e capacidade produtiva deram-se com ganas à guerra das vacinas, privilegiando cada qual a “sua” vacina, em benefício exclusivo de suas corporações farmacêuticas, e dedicando-se a parrudas operações de “lobby” para impedir que países periféricos comprassem as de seus concorrentes.

A respeito, basta lembrar a atuação das embaixadas estadunidenses nas capitais latino-americanas, durante o governo de Donald Trump, com o objetivo de persuadir os governos locais a rejeitar a vacina Sputnik-V e dissuadi-los de aceitar ajuda de “países mal-intencionados como Cuba, Venezuela e Rússia”, conforme se pode ler no relatório anual do Departamento de Saúde dos EUA.

Na contramão do descaso, da segregacão e do mal-disfarçado racismo – presente em expressoes como “virus chinês” ou “variante africana” -, cabe lembrar que o Papa Francisco, em sua homilia de Páscoa deste ano, exortou a comunidade internacional, “no espírito de internacionalismo das vacinas”, a “comprometer-se em superar os atrasos na distribuição e favorecer o compartilhamento, em particular com os países mais pobres”.

E o Brasil com isso?

O Brasil definiu, em época recente, que a África estaria entre as máximas prioridades de sua cooperação internacional, posição que não só deveria atender aos interesses do desenvolvimento econômico e social dos dois continentes, num contexto de retomada do pragmatismo e da assertividade da atuação brasileira, mas que também faria parte de um resgate da dívida histórica que temos para com o continente africano, a par do combate ao racismo estrutural da sociedade brasileira.

Tal priorização foi devidamente “engavetada” após o golpe parlamentar que depôs a presidente Dilma Rousseff em 2016. Seria ocioso aqui elencar evidências desse processo de abandono da África. Como seria ocioso listar “nossos” fracassos no combate à pandemia no Brasil.

Nunca será demais, porém, dizer que o Brasil dispunha, no início de 2020, de capacidade tecnológica, produtiva e logística suficiente para produzir, distribuir e aplicar vacinas em quantidade maior do que a necessária para a imunização da população brasileira. Instituições de pesquisa e desenvolvimento como o Instituto Butantã e a Fiocruz/Farmanguinhos, em cooperação com as universidades e demais centros tecnológicos civis e militares, poderiam, mediante a adequada cooperação internacional, produzir tempestivamente milhões de doses de vacina para uso dentro e fora do Brasil.

Graças ao Sistema Único de Saúde, o Brasil também dispunha de capacidade logística e operacional capaz de garantir um processo seguro e rápido de imunização de massa. O mesmo Brasil que desde 1996, durante o governo Fernando Henrique Cardoso, se destacara mundialmente por possuir o mais bem-sucedido programa de combate à Aids/HIV; e que desde 1973 passara a contar com um Plano Nacional de Imunização dentre os mais amplos e eficazes do mundo.

Pois este mesmo Brasil não só deixou de atender à sua própria população – por incompetência, negligência ou pura cafajestagem – como perdeu a oportunidade de prestar aos nossos irmãos africanos a ajuda que as velhas metrópoles coloniais e as novas metrópoles imperiais prometeram e deixaram de prestar.

Enquanto isto, a República Popular da China, sem prejuízo de proteger exemplarmente sua própria população, doou um bilhão (isto mesmo, leitor, um bilhão!) de doses da vacina contra a Covid-19 aos países africanos, sem distinção entre governos “bem-comportados” ou “rebeldes”, sem condicionamentos e sem contrapartidas imediatas.

A imprensa europeia, conquanto menos venal, interessada e oligopolizada que a brasileira, deblaterou contra o “colonialismo chinês”, creditando o esforço de Pequim a uma mera tentativa de “melhorar sua imagem”. Mas, como a própria Deutsche Welle admitiu, nas palavras do africanista Helmut Asche, da Universidade de Leipzig: “nada se ganha ao denegrir os esforços chineses: o Ocidente claramente tem estado aquém do que poderíamos e deveríamos fazer. É óbvio que existem interesses chineses em questão, mas a ajuda chinesa também serve aos interesses dos africanos”.

A pequena e hostilizada Cuba, por seu turno, onde a saúde e a ciência são levadas a sério, é hoje, segundo o insuspeito New York Times, o recordista mundial em vacinação, com uma média de 2,6 doses por habitante, e está imunizando inclusive crianças a partir de dois anos de idade. Mesmo não sendo um país rico, Cuba coopera com os países africanos, mediante o envio de médicos e a transferência de tecnologia.

Fossem a saúde e o bem-estar do povo brasileiro uma prioridade, como o foram até recentemente, não teríamos passado pela tragédia e pelo vexame que passamos no contexto da pandemia. E fosse o continente africano, como o foi até recentemente, objeto da atenção fraterna do Brasil, talvez não se encontrassem nossos irmãos de além-mar hoje tão desprovidos de meios e recursos e, ainda mais importante, de solidariedade.

Para a opinião pública africana, passamos de um país soberano, “altivo e ativo” no contexto global, a meros exportadores de “pastores” de igrejas caça-níqueis, cujo “lobby” no Brasil emplaca até ministros das cortes superiores, não por seus eventuais mérito e saber jurídico, mas pelo simples pertencimento a uma denominação religiosa, em pleno desrespeito ao princípio da laicidade do Estado, consignado na Constituição Federal.

A retomada da política africana do Brasil, porém, somente será possível com a retomada de uma visão fraterna e solidária, que incorpore também a dimensão latino-americana, voltando a promover a coordenação e a cooperação com os países de “Nuestra América”. Nesse sentido, as vitórias de Pedro Castillo, Xiomara Castro e Gabriel Boric não diminuem, mas antes aumenta a responsabilidade do Brasil como o maior e mais populoso país desde o Rio Grande ate o Cabo Horn.

Somente com a integração latino-americana, prevista no Artigo 4º. da Constituição brasileira, poderemos superar nossas taras históricas, como o racismo, a desigualdade e o autoritarismo. Somente com os olhos e o coração voltados para o sul do mundo, para a “nossa” América e para o solo ancestral de nossas origens africanas, poderemos construir a utopia brasileira desejada por Darcy Ribeiro, Paulo Freire e Celso Furtado.

A exemplo do Peru, de Honduras e do Chile, resta derrotar também no Brasil aquilo que o músico, sociólogo e radialista gaúcho Demétrio Xavier designou oportunamente de “Tanatocracia”, e que poderíamos definir como “o governo da morte, pela morte e para a morte”. Alguém disse recentemente que “é melhor morrer do que perder a liberdade”, despautério reminiscente do lema “Viva la muerte” dos falangistas espanhóis, que Miguel de Unamuno chamou de “insensato, necrófilo, ridículo e repulsivo”.

Não há liberdade sem vida, e a vida pouco vale sem a liberdade. Trata-se de afirmar a vida em liberdade. De todos os povos de Nossa América, e também de nossos irmãos africanos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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