Arthur Chioro

Ex-ministro da Saúde

Opinião

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Reincidência sanitária

Embora a OMS tenha classificado a varíola dos macacos como uma emergência global, a resposta brasileira mostra-se lenta, débil e desarticulada

Reincidência sanitária
Reincidência sanitária
Manchas causadas pela varíola dos macacos - Foto: iStock
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A Organização Mundial da Saúde (OMS) anunciou, em 23 de julho, a varíola dos macacos, uma tradução literal incorreta de Monkeypox, como uma nova emergência de saúde pública de preocupação internacional.

O comunicado foi feito após o registro de mais de 16 mil casos – ainda que com apenas cinco mortes diretamente associadas –, em mais de 70 países, em apenas dois meses. Trata-se, só neste século, do sétimo evento classificado como emergência global, todos causados por vírus: Influenza H1N1 em 2009, Poliomielite em 2014, Ebola em 2014 e 2018, Zika em 2016 e Covid-19 em 2020.

A classificação de emergência de saúde pública de preocupação internacional é atribuída a doenças causadas por bioagentes, como vírus, bactérias ou parasitas, não por sua gravidade, mas porque se apresentam de forma inesperada ou desconhecida e porque sua disseminação representa riscos de saúde pública global e requer intervenções coordenadas entre vários países.

O Monkeypox é bem estudado, ativo na África Ocidental e Central e causa quadros clínicos de leves a moderados. A doença, este ano, além de ter passado a ocorrer onde não era habitual, aumentou nas regiões endêmicas, afetando agora também mulheres e crianças. Trata-se, portanto, de um evento extraordinário, fruto da mutação do vírus e/ou de menor imunidade na população, em virtude do fim da administração da vacina contra a varíola.

Ele exige ações de vigilância epidemiológica coordenadas em nível internacional, primeiro, porque há baixa disponibilidade de meios de antivirais e vacinas. Segundo, porque há dificuldade de implementar um período de isolamento de 21 dias. Terceiro, porque o rastreio de contatos tem sido ineficaz, devido ao perfil de contágio conhecido até ao momento. Por ser uma doença transmissível por contacto físico íntimo e prolongado, sexual ou de outro tipo, tem incidido, sobretudo, em homens que fazem sexo com homens e que mantêm vários parceiros.

O Monkeypox tornou-se uma emergência de saúde global não por sua gravidade, mas porque respostas em nível nacional não produzem o efeito desejável. Seu enfrentamento exige maior coordenação científica, tal como se fez durante a Covid-19, e a produção e disponibilização precoce de terapêuticas aos vários países – em especial aos de baixa renda. O desenho das ações deve distinguir os países que ainda não têm casos registados, os que já lidam com transmissões comunitárias e aqueles onde o vírus é endêmico e registam um aumento de contágio.

Uma doença, ao ser classificada como emergência global, obriga os países a respeitar o Regulamento Sanitário Internacional (RSI), cuja atual versão está em vigor desde 2007 e é, ao lado da Convenção Quadro para o Controle do Tabaco, um instrumento multilateral vinculativo da OMS que tem força de lei no sistema jurídico dos 194 Estados membros.

A resposta brasileira, todavia, continua lenta, débil e desarticulada. O governo Bolsonaro mantém o viés negacionista e parece nada ter aprendido com a tragédia da pandemia de Covid-19. O criminoso desmonte da exitosa estrutura de vigilância do Ministério da Saúde e de sua capacidade de enfrentamento de epidemias e emergências sanitárias, construídas desde o início do século XX, não se resolverá pela mera substituição dos militares e indicados pelo Centrão – sem nenhuma experiência em gestão no SUS – que se apoderaram da estrutura do órgão federal.

Será necessário criar uma Rede Nacional de Controle de Doenças e Emergências Sanitárias, fortalecendo as ações de Vigilância, Alerta e Resposta às Emergências em Saúde Pública do SUS (VigiAR), em parceria e articulação com as demais esferas de governo, universidades, institutos de pesquisa e laboratórios públicos.

Sob a coordenação do Ministério da Saúde e fundamentada em orientação científica, essa rede deve apoiar os gestores do SUS e coordenar as respostas às emergências. Essa Rede terá ainda de assumir a responsabilidade pelo monitoramento de doenças emergentes e reemergentes, e pelos estudos e monitoramento de genômica e resistência bacteriana.

É preciso, mais que nunca, cuidar das ações da vigilância em saúde – epidemiológica, sanitária e ambiental – e buscar minimizar os riscos associados aos desastres e tragédias evitáveis, que acarretam sérios prejuízos à saúde e à sociedade.

A varíola dos macacos já está entre nós. A Covid-19 ainda não se foi. A próxima emergência de saúde global vem aí. Quando, não se pode dizer. Mas não há dúvida de que virá. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1220 DE CARTACAPITAL, EM 10 DE AGOSTO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Reincidência sanitária”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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