Educação

‘Reforma da reforma’ é sancionada sem festa

O desafio do governo Lula é evitar que os problemas da reforma do ensino médio de Temer se repitam e voltem a lhe assombrar em 2026

‘Reforma da reforma’ é sancionada sem festa
‘Reforma da reforma’ é sancionada sem festa
Créditos: Fernando Frazão / Agência Brasil
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Foi sem alarde que o presidente Lula sancionou a Lei n. 14.945/2024 que institui a “reforma da reforma” do Ensino Médio no Brasil (31 jul. 2024). Por muito menos, o Palácio do Planalto organizou grandes cerimoniais nos últimos tempos: lançamentos de programas de pequena monta e assinaturas de leis com repercussão muito menor do que esta.

A avaliação do governo – aliás, correta – é que o resultado do processo legislativo lavrado na nova lei não agradou à maioria dos que gritaram a plenos pulmões que a única solução aceitável para o “Novo Ensino Médio” (NEM) de Michel Temer & associados seria a revogação total.

O governo Lula, porém, pareceu sempre mais preocupado em evitar as vaias do que em garantir um processo de discussão qualificado dos problemas que a eventual nova reforma deveria enfrentar. Apesar disso, foi justamente a vaia – ampla e incessante – ao governo federal que resultou na suavíssima “reforma da reforma” que acaba de ser sancionada.

Lidar com a nefasta reforma do ensino médio era uma obrigação do governo federal, um missão dada ao presidente da república por dez entre dez profissionais da educação desde antes das eleições de 2022. No entanto, o seu ministro da educação, que assumiu o posto em janeiro de 2023, mostrou desde logo que não estava disposto a enfrentar as patologias do NEM.

Após alguns meses de justo achincalhe por parte de estudantes e educadores/as, o Ministério da Educação (MEC) finalmente lançou uma consulta pública, que resultou em dados brutos que até hoje se recusa a fornecer. Depois, enviou o Projeto de Lei n. 5.230/2023 para o Congresso Nacional.

A letargia ministerial com relação ao PL (relatado na Câmara pelo mesmo ex-ministro de Temer que aprovou o NEM) gerou novas cobranças de quem esperava um MEC menos servil aos agentes do mercado que, em 2016, ajudaram a demover Dilma da presidência e a desmontar o ensino médio público, que concentra 88% das matrículas no Brasil.

A resposta à pressão popular veio na forma de um soco que Camilo Santana teria dado (segundo relatos na imprensa) em uma mesa durante reunião com o relator Mendonça Filho (União-PE), e que teria resultado na restituição da carga horária mínima de 2.400 horas de formação básica para parte dos/as estudantes (após a redução pelo NEM, em 2017, a um teto de 1.800 horas). O soco emprestou ares enérgicos ao ministro de estilo morno, excitando setores da militância governista que gostam de associar firmeza e autoridade na política a acessos de macheza e atestados de imbrochabilidade.

O PL n. 5.230/2023 seguiu para o Senado Federal e voltou substantivamente melhorado para a votação final na Câmara (09 jul. 2024), mas as melhorias foram ignoradas por Mendonça Filho, pelo MEC e pela liderança do governo na Câmara. O líder José Guimarães (PT-CE) portou-se novamente como operador do centrão capitaneado por Arthur Lira (PP-AL). Priorizou o acordo paroquial entre bancadas em detrimento da obrigatoriedade do ensino de espanhol no ensino médio, da ampliação progressiva da carga horária da formação básica para estudantes do ensino técnico, de uma regulamentação mais estrita da EaD e das parcerias público-privadas etc. etc.

A certa altura da votação, o painel exibiu a constrangedora divergência entre as orientações de voto do governo e da Federação PT-PCdoB-PV, esta última favorável à obrigatoriedade do ensino de espanhol na última etapa da educação básica. Para defender a indefensável posição contra a obrigatoriedade, o líder do governo Lula dirigiu-se a Mendonça Filho e afirmou que “na Câmara os acordos precisam ser mantidos”. E continuou: “Em nome da palavra que eu dei pelo governo, na hora em que foi feito o relatório, negociado com o ministro Camilo, […]  eu encaminho pelo governo, para honrar o compromisso que nos fizemos lá atrás, o texto da Câmara que é o que está no teu relatório”.

Na visão de Guimarães, a palavra do varão tem mais valor do que todos os esforços coletivos empreendidos pela melhoria o ensino público das massas no país. Como chamar de “antipetista” quem critica o governo Lula, quando é o próprio PT que orienta voto contrário ao governo?

A tramitação do PL no Congresso Nacional terminou de forma melancólica. Lira acelerou a votação e dispensou a deliberação dos destaques que visavam repor os acréscimos positivos do Senado. Com isso, empurrou o acordão para fora dos holofotes e poupou José Guimarães de ter de repetir o discurso vexatório com que, minutos antes, defendera a reforma educacional acalentada pelos saudosistas de Temer. A pauta menor da reforma do ensino médio, superada no plenário, deu lugar a outra bem mais lucrativa do ponto de vista econômico e eleitoral: a reforma tributária.

Derrotados no debate público, fundações e institutos empresariais se viram aliviados – graças aos acordos que ajudaram a costurar – pelo fato de a nova lei ter mantido diversos elementos da reforma original. Isso nos leva a indagar sobre o que fará o governo Lula para evitar que os problemas do NEM se repitam e voltem para lhe assombrar às vésperas da eleição de 2026.

O que vai rolar por aí?

A falta de coragem política do governo federal para enfrentar as pautas educacionais da direita não oferecem bons presságios sobre o futuro da reforma da reforma do ensino médio. Daí a relativa surpresa dos/as educadores/as com o veto presidencial ao trecho do PL que estabelecia que o Enem e os futuros exames vestibulares deveriam incluir os conteúdos dos chamados “itinerários de aprofundamento”.

Com efeito, submeter um exame nacional focalizado em conhecimentos básicos a particularidades curriculares regionais é ideia que só poderia ter saído da cabeça de quem não entende patavina de política pública. O veto não agradou a esse pessoal, que afirmou que a decisão presidencial iria enfraquecer os itinerários e, por conseguinte, o projeto de flexibilização curricular que lastreou a primeira e esta nova reforma.

É curioso que os mesmos “especialistas” que se entrincheiraram na defesa da Base Nacional Comum Curricular (BNCC), enaltecendo a política de centralização curricular como a bala de prata realizadora da equidade educacional no país, agora lamentem que o MEC queira evitar que um exame nacional centrado na BNCC incorpore uma salada de conteúdos indeterminados definidos por assessorias empresariais.

Qualquer estudante de escola pública neste país é capaz de entender que o que realmente enfraquece a flexibilização curricular (a popular “liberdade de escolha”) nas escolas são a infraestrutura precária e a falta de profissionais da educação bem remunerados e com boas carreiras e condições de trabalho.

A investida das fundações e institutos empresariais contra o Enem dá razão aos que viam na reforma de Temer um projeto das elites econômicas para afastar do ensino superior os/as estudantes das escolas públicas. Nesse caso, felizmente, os reformadores fracassaram. Em todos os outros, os riscos permanecem.

A ala do MEC que aposta na mitigação de retrocessos via diálogos institucionais e arranjos políticos com o empresariado (o popular “resistir por dentro”) parece convencida de que conseguirá impedir a repetição dos absurdos da reforma anterior. Isso seria feito de duas formas. Primeiro, reconquistando o lugar do Ministério na coordenação da implementação da política curricular, perdido durante o governo Bolsonaro para um arranjo entre secretários de educação e atores empresariais que tratam escolas e sistemas de ensino públicos como entidades abstratas. Segundo, garantindo que o Conselho Nacional de Educação (CNE), via regulamentação dos itinerários formativos, freie os arroubos que levaram tantas redes estaduais de ensino a substituírem aulas de História, Sociologia e Química por aulas de “o que rola por aí?”, “seja um milionário” e “brigadeiro gourmet”.

Nada disso será fácil, pois nem o Conselho Nacional de Secretários de Educação (Consed) e nem as fundações e institutos empresariais pretendem abdicar do protagonismo que tiveram ao longo da implementação do NEM. Já o CNE, com uma composição ligeiramente mais plural do que a anterior, segue com participação majoritária do setor privado. Isso significa que o MEC dividirá o proscênio da regulamentação da nova reforma com os mesmos papas da inovação educativa que não ruborizam em chamar curso de empreendedorismo juvenil feito a distância de “ensino técnico” e em defender a substituição da formação científica por aulas sem conteúdo (mas só nas escolas públicas).

A verdadeira medida da hegemonia da filantropia empresarial na educação é o fato de ela nunca ser cobrada pelos horrores que produz em matéria de política educacional e de violação de direitos. Os “especialistas” do mercado que trabalharam para preservar a espinha dorsal do NEM na Lei n. 14.945/2024 já estão prontinhos para – mais uma vez – “auxiliar” as redes de ensino na implementação da reforma da reforma.

A conclusão a que podemos chegar até aqui é que todo governo pretensamente progressista que joga parado nas agendas de interesse do povo precisa ser pressionado. A existência da Lei n. 14.945/2024 demonstra isso. Sem o movimento #RevogaNEM não existiria este Novo Novo Ensino Médio – o NNEM.

Quando é o direito à educação de milhões que está em jogo, a amplitude das alianças de Lula deve ser sempre questionada. Para tanto, vale explicitar que a educação tem sido pauta secundária para o Planalto. Vale expor as afinidades eletivas de Camilo Santana com agentes do mercado que abominam a escola pública. Vale explicitar os acordos de balcão que resultam em prejuízos para milhões de jovens. A vaia e o #ForaLemann também valem num governo democrático cujo presidente se diz avesso aos tapinhas nas costas, mas bronqueia quando a plateia vaia um opositor que ele deseja cativar para ampliar seu arco de alianças.

O presidente sabe que a agressão gratuita de uma classe média reacionária contra Dilma na abertura da Copa de 2014 não é comparável ao repúdio de um plenário de profissionais da educação à influência desproporcional de fundações e institutos empresariais nas políticas educacionais do país. Seria melhor que Lula, em vez de aplicar uma reprimenda moral na plateia toda vez que alguém é vaiado na sua presença, agradecesse ao povo que questiona as suas alianças com a direita e o progressismo de fachada praticado em tantas áreas e por tantos membros de seu governo.

Embora a inepta militância governista insista em classificar quem critica o governo Lula pela esquerda como “linha auxiliar” do bolsonarismo, aquilo que verdadeiramente auxilia a direita é a covardia política de enfrentá-la no terreno das políticas públicas.

Cabe ao governo federal – premido pela estridência popular – decidir de quem ele pretende ser linha auxiliar quando se trata de impedir o avanço de uma reforma educacional fundada na redução de custos e na vedação do acesso ao conhecimento para estudantes pobres. Tirem os pés do chão, porque os próximos dois anos prometem.

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