Fernando Cássio

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Professor da Faculdade de Educação da USP. Integra a Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e o comitê diretivo da Campanha Nacional pelo Direito à Educação

Opinião

A reforma do ensino médio e seus eufemismos

Afora todos os problemas do PL de ‘reforma da reforma’, nem mesmo a “vitória” das 2.400 horas está garantida no Senado

O ministro Camilo Santana (PT) na Conferência Nacional de Educação. Fotos: Luis Fortes/MEC
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O projeto de “reforma da reforma” do ensino médio foi aprovado na Câmara dos Deputados e remetido ao Senado Federal). As assessorias parlamentares já ventilam a expectativa de que o PL será aprovado sem grandes alterações. Se o plano dos senadores for este, será um balde de água fria sobre os que vivenciaram o “Novo Ensino Médio” (NEM) nas escolas e os que demonstraram os efeitos deletérios desta política de aviltamento curricular para estudantes pobres.

Durante e após a votação na Câmara, membros do governo e de sua base parlamentar puseram-se a repetir extasiados que o texto do PL estava chegando “maduro” ao Senado Federal. A música desse realejo, porém, foi feita para ludibriar. Tanto o PL inicial do governo federal quanto o substitutivo aprovado na Câmara têm graves problemas.

Embora a carga horária da formação geral básica tenha sido ampliada de um máximo de 1.800 horas (atual NEM) para um mínimo de 2.400 horas – a carga horária total de 3.000 horas do NEM permanece igual –, o texto da “reforma da reforma” propõe esse patamar somente para estudantes do ensino médio regular, assumindo que o ensino médio técnico-profissionalizante terá carga horária menor das disciplinas básicas (entre 1.800 e 2.100 horas). Somando-se isso à possibilidade de contratação privada de cursos profissionalizantes medíocres (garantida pelo texto da Câmara), temos uma política de ativa precarização da Educação Profissional e Tecnológica.

Não é de bom tom exigir mais do que a ‘vitória possível’, mesmo que ela signifique uma derrota fragorosa para o direito à educação

O PL de “reforma da reforma” do ensino médio é reino de eufemismos. O estímulo ao trabalho precoce chama-se “aproveitamento das experiências extraescolares” como carga horária letiva. A admissão de professores sem formação continua atendendo pelo nome pomposo de “notório saber”. A exclusão das aulas de espanhol e a possibilidade da oferta de ensino a distância (agora sob o eufemismo “ensino mediado por tecnologia”) ficam regulamentados como “excepcionalidades” ao bel-prazer das secretarias de educação. Apesar dos pesares, nas palavras de alguns parlamentares petistas durante a votação, foi a “vitória possível” (outro eufemismo) diante das circunstâncias.

A tonitruante claque governista nas redes sociais brada que o campo educacional, em vez de criticar, deveria agradecer ao governo Lula por estar apenas ajoelhado aos pés dos bilionários amigos da educação pública (e não deitado feito capacho sob seus pés). A alternativa, gostam de lembrar, seria o fascista amigo de milicianos – aquele cuja eleição se deu com a ajuda dos mesmos bilionários “amigos” da escola pública, aqueles que, claro, não moveram uma palha para salvar o governo de Dilma Rousseff. Pelo contrário, ajudaram Temer a aprovar a reforma do ensino médio que acentuou desigualdades e – surpresa! – está sendo reformada com sua prestimosa ajuda pouco tempo depois.

Críticas, manifestos, protestos, greves em universidades e institutos federais, tudo o que possa minar a popularidade de Lula ou estimular a temida “polarização” é contraindicado pelos adeptos do dialogismo de fachada. Até a descomemoração dos 60 anos de um golpe militar é malvista. Para evitar uma nova escalada de descomedimento das classes médias reacionárias, das casernas e das elites econômicas, parece que as esquerdas e os movimentos sociais é que devem praticar o comedimento, suspendendo suas pautas históricas. Não é de bom tom exigir mais do que a “vitória possível”, mesmo que ela signifique, no caso do ensino médio, uma derrota fragorosa para o direito à educação.

O diversionismo, contudo, não atenua o que se viu na noite de 20 de março de 2024 durante a votação do PL n. 5.230/2023, que resultou na aprovação de um substitutivo proposto pelo relator Mendonça Filho (União-PE), ex-ministro de Temer e autoproclamado pai do NEM.

Servilismo e vergonha alheia

A votação do PL n. 5.230/2023 na Câmara foi um espetáculo de vergonha alheia. Salvaram-se apenas a bancada do PSOL, que rejeitou o texto e produziu bons discursos na tribuna, e alguns poucos parlamentares da base do governo que demonstraram conhecer os problemas do substitutivo que, por força dos acordos de bancada, estavam aprovando.

O líder do governo na Câmara, deputado José Guimarães (PT-CE), tomou a palavra logo na sequência da apresentação do relator Mendonça Filho (União-PE) para se derramar em elogios. Falando em nome do governo, Guimarães agradeceu o relator pela “enorme paciência” e pelo trabalho “que deve ser elogiado pelo Brasil, pelos educadores brasileiros”. Por fim, sugeriu que o substitutivo fosse aprovado por unanimidade no plenário, já que expressaria a “posição coletiva dos vários corações que amam a educação brasileira”. A julgar pela atuação parlamentar de Guimarães nas pautas da educação, o “PT-CE” ao lado de seu nome bem que poderia significar “PT-Centrão”.

A votação foi relativamente rápida. A relatoria acolheu uma emenda da deputada Tabata Amaral (PSB-SP) para permitir que estudantes do chamado “itinerário profissionalizante” possam ter uma Formação Geral Básica com até 2.100 horas – a carga horária que secretários de educação e institutos empresariais tentaram, desde o início, empurrar para todos (1.800 + 300 horas).

Sobre a obrigatoriedade do ensino da língua espanhola, prevaleceu o “as redes estaduais que quiserem, ofereçam”. Ocorre que a desobrigação legal, sabe-se, será um estímulo para a abolição das aulas de espanhol no ensino médio de um país com 14 mil quilômetros de fronteiras terrestres e aquáticas com países hispanofalantes.

O mesmo estratagema da excepcionalidade que “autoriza” aulas de espanhol no ensino médio foi empregado – desta vez com sinal trocado – para induzir a manutenção da oferta do tal “ensino mediado por tecnologias” e a contratação de instituições privadas para a formação técnica e profissional. Neste último caso, a “preferência”, sublinha o texto aprovado na Câmara, será dada a instituições públicas. Reproduzindo discursos idênticos, deputados governistas e da extrema direita estavam convencidos de que a impossibilidade de acesso à educação básica nas regiões remotas do país deve ser resolvida à base de “mediação tecnológica” e não da construção de escolas decentes.

Alice Portugal (PCdoB-BA) bem que tentou demover o relator da manutenção da possibilidade de contratar professores com “notório saber”. Foi engambelada por Mendonça, que replicou à deputada que é a Lei de Diretrizes e Bases da Educação Nacional (LDB, Lei n. 9.394/1996) que autoriza esse tipo de contratação (art. 61, inciso IV). O relator só esqueceu de mencionar que foi a própria reforma do ensino médio (aprovada quando ele, Mendonça, era ministro de Temer) que incluiu esse dispositivo na Lei. O relator deu a entender que a LDB é algum tipo de lei divina impermeável a modificações por leis ordinárias. Mas o que estariam fazendo ali, então, todos aqueles parlamentares? Esperando a entrega de pizzas? Tendo aulas de hidroginástica? Com efeito, a versão original do PL enviada pelo Ministério da Educação (MEC) continha um brevíssimo artigo 7º – ignorado pelo relator – que previa, entre outras coisas, a revogação da cláusula do “notório saber” da LDB.

Votada a matéria, Mendonça Filho arrolou uma lista de agradecimentos. Políticos do seu partido, o presidente da Câmara, o líder governista José Guimarães, o bolsonarista Carlos Jordy (PL-RJ) e outros deputados do PT. Todos irmanados pelo ensino médio de qualidade no Brasil. Em tom de modéstia, o relator reconheceu suas próprias limitações de conhecimento em matéria de educação e rendeu homenagens às suas assessorias, a Maria Helena Guimarães de Castro (personagem central nas políticas educacionais do estado de São Paulo e dos governos FHC e Temer) e a diversos secretários estaduais de educação: Vitor de Angelo (ES), Roni Miranda Vieira (PR), Renato Feder (SP, ex-PR), Rossieli Soares da Silva (PA, ex-SP, ex-AM e ex-ministro da educação após a saída de Mendonça), Raquel Teixeira (RS, ex-GO) e Hélio Daher (MS) – todos sobejamente conhecidos pelo amplo diálogo… com o campo empresarial.

A gratidão foi estendida à presidente-executiva da coalizão empresarial Todos pela Educação e à sua equipe, que, na visão de Mendonça Filho, são frequentemente “mal interpretados” no debate público. O agradecimento final foi reservado a Camilo Santana e à equipe do MEC, que souberam colocar “o interesse público à frente dos interesses pessoais”. Por fim, o relator reverenciou “o grande presidente a que a história há de fazer justiça: Michel Temer”, e se declarou convencido de que está entregando “aos jovens do Brasil um ensino médio moderno, adequado, conectado com a educação tecnológica e que irá sintonizar o Brasil com o que há de mais moderno no mundo”.

O discurso provocou uma sensação de déjà vu. Em fevereiro de 2017, um igualmente emocionado ministro da educação afirmou – a pretexto da sanção da Lei n. 13.415/2017 que instituiu o perverso e fracassado NEM – que ele iria “proporcionar mais protagonismo para o jovem e mais oportunidades para ele do ponto de vista profissional e educacional”. Deu no que deu.

Num derradeiro espasmo de falta de sintonia entre o legislador e as demandas do povo, Mendonça misturou gesto de grandeza com zombaria para saudar a “pequena oposição do PSOL” que garantiu o espaço do contraditório. Ele, que tantas vezes criticou publicamente o suposto revanchismo da esquerda contra o legado de Temer, ainda não superou o fato de que a demanda pela revogação do NEM (posteriormente falseada na demanda por uma “reforma da reforma”) nasceu nas escolas do país, nos sindicatos, nos movimentos sociais e nas universidades públicas que formam professores e que pesquisam a educação. Contra o oportunismo eleitoral dos Mendonças e a falsa generosidade das elites econômicas, as comunidades escolares recusaram o empobrecimento do ensino médio dos mais pobres.

Foi justamente a “crítica radicalizada”, tratada como patologia por políticos medíocres e demais simpatizantes do empresariado aninhados no governo federal, que devolveu 600 horas da carga horária das disciplinas escolares a parte dos estudantes que chegaram ao Enem 2023 desalentados pela falta de aulas de Química, Física, Biologia, Sociologia, Filosofia, História e Geografia no ensino médio. A redução do acesso ao conhecimento foi descrita assim pelos próprios estudantes, como mostrou a Nota Técnica mais recente da Rede Escola Pública e Universidade (REPU) e do Grupo Escola Pública e Democracia (Gepud), com dados de uma pesquisa pioneira com 696 estudantes da primeira geração de concluintes do NEM.

É curioso que todos os setores interessados em defender o modelo de ensino médio do governo Temer só tenham se preocupado – três anos depois de o NEM ter sido implementado em escala nas redes estaduais – em fazer pesquisas de opinião com ingressantes desejosos das liberdades do currículo flexível no ensino médio, mas nunca com os concluintes que poderiam de fato avaliar a experiência vivida nas escolas.

Não fossem os protestos estudantis e a disputa da opinião pública por pesquisadores e professores, o MEC provavelmente seguiria com o NEM em velocidade de cruzeiro, mitigando seus estragos com pequenos remendos normativos. O mesmo pode ser dito a respeito dos sempre diligentes parceiros empresariais das reformas educacionais no Brasil, que ao longo do processo de reforma da reforma vêm trabalhando para que o “ajuste” no precioso legado de Temer seja o menor possível.

Nada está garantido

A coalizão Todos pela Educação divulgou um posicionamento público a respeito do substitutivo aprovado na Câmara, em que considera “positiva” a elevação da carga horária das disciplinas básicas dos estudantes de formação técnica e profissional para 2.100 horas. Entretanto, “julga que ainda é possível aprimorar as definições (…), buscando reduzir as chances de se ter diferenças acentuadas de cargas horárias” entre a formação profissional e o ensino médio regular. A fim de evitar os problemas de interpretação a que se referia Mendonça Filho, a organização aproveitou o rodapé para “relembrar” os leitores que desde maio de 2023 já vinha defendendo “um modelo de ‘banda’, com mínimos que iam de 2.100h a 2.400h, com definição a partir de cada rede de ensino”.

Pois basta ler os posicionamentos da coalizão a respeito da carga horária do ensino médio (e há documentos tratando do assunto em abril e dezembro de 2022; em maio, agosto, novembro e dezembro de 2023; e em março de 2024) para perceber que o referido “modelo de banda”, expressão que surgiu apenas agora, é mero artifício retórico para cantar vitória sobre o texto aprovado na Câmara. Em seu último posicionamento do ano passado, lia-se que “a proposta do Todos Pela Educação defende uma FGB [Formação Geral Básica] de 2.100h igual para todos os estudantes e uma compensação de até 300h da carga horária dos cursos mais extensos de EPT” (p. 3) – isto é, 2.100 horas para todos e 2.100 horas (1.800 + 300) para estudantes dos “cursos técnicos”.

Apesar do simpático aceno aos setores do campo educacional que impeliram o governo Lula a mexer no NEM e a insistir em um piso de 2.400 horas para a formação geral básica, a “banda” do empresariado sempre tocou pelo rebaixamento da carga horária. Os que entoam a canção da “vitória possível”, portanto, deveriam estar mais preocupados em evitar a sua reversão no Senado do que em aplicar lições de moral nos que criticam o governo federal pela esquerda. O ensino médio brasileiro precisa de bem mais do que um soco na mesa do ministro Camilo Santana.

A nota do Consed sobre o texto aprovado na Câmara, de tão breve, revela muito. Os secretários estaduais de educação elogiam as 2.100 horas de formação básica no ensino profissionalizante e a oferta flexível de “ensino mediado por tecnologia” e de língua espanhola alinhada “às necessidades locais e à disponibilidade de recursos”. Mas nada comentam sobre a ampliação da carga horária da formação básica da maioria para 2.400 horas, o que resultará na criação de um patamar inferior de acesso às disciplinas básicas para estudantes que optem por trajetos formativos técnicos e profissionalizantes.

A baixíssima demanda dos estudantes pela formação profissionalizante chinfrim do NEM, observada nas redes estaduais nos últimos anos, não será ajudada por uma carga horária inferior de disciplinas para esses estudantes. Sempre alinhada com os secretários de educação, a Todos pela Educação avaliou que “ainda é possível aprimorar as definições” no Senado Federal. Ou seja, além de todos os problemas da atual versão do PL n. 5.230/2023, nem mesmo a carga horária de 2.400 horas de disciplinas básicas para uma parte dos estudantes – ponto nevrálgico da “reforma da reforma” até aqui – está garantida.

É perfeitamente possível defender que todo estudante do ensino médio tenha uma carga horária mínima de disciplinas básicas de 2.400 horas integrada, se for o caso, com cursos de Educação Profissional Técnica feitos em escolas técnicas bem estruturadas e com profissionais da educação habilitados. Nesse caso, bastaria ampliar a carga horária total para além das 3.000 horas para abrir “espaço” para cursos técnicos com carga horária superior, digamos, a 1.200 horas. Seria como um “modelo de bandas”, só que variando sempre para cima a depender do tipo de curso técnico escolhido. É evidente que, nesse caso, um investimento robusto em escolas técnicas estaduais e federais seria fundamental para atender o aumento da demanda por ensino de alta qualidade.

Há espaço, além disso, para muitos outros aprimoramentos da matéria – agora sob relatoria da senadora Profa. Dorinha Seabra (União-TO) – no Senado Federal: a oferta obrigatória de língua espanhola, a vedação da EaD (e seus eufemismos) na educação básica, a abolição da cláusula do “notório saber”, o fortalecimento do Ensino Médio Integrado dos Institutos Federais, a eliminação do dispositivo que permite aproveitar “experiências extraescolares” (trabalho precoce) e a proibição de parcerias com instituições privadas que poderão transformar a “educação técnica” em um feirão de cursinhos profissionalizantes precários e de baixa complexidade. Os jovens deste país precisam de uma formação sólida no ensino médio, e não de eufemismos para disfarçar retrocessos.

Seguindo a toada do “remendo possível”, alguns coristas da razoabilidade política solfejaram nas redes sociais que aqueles que não reconhecem as melhorias da reforma da reforma do ensino médio não sabem ler os textos ou têm o juízo comprometido pelo próprio sectarismo. Sua triunfante conclusão é que quem não gosta do samba, bom sujeito não é. Acostumado ao achincalhe pelas opiniões musicais divergentes das do mainstream empresarial, este colunista insiste, porém, que o momento de discutir a qualidade e o andamento do samba é agora.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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