Eliara Santana

Pesquisadora Associada do CLE/Unicamp e uma das criadoras do Observatório da Desinformação.

Opinião

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Realidade paralela

O Brasil tornou-se refém do ecossistema de desinformação. Combatê-lo não é censura

Messias quer conter os danos ao setor público causados pelos “idiotas da aldeia” nas redes sociais, como dizia Umberto Eco - Imagem: Renato Menezes/AGU/MJSP e Joedson Alves/Anadolu Agency/AFP
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O combate sistematizado à desinformação integra a pauta do novo governo Lula, e isso é motivo de celebração. Na primeira semana de janeiro, a Advocacia-Geral da União, sob comando do ministro Jorge Messias, instituiu uma estrutura específica, a Procuradoria Nacional da União de Defesa da Democracia, para atuar especificamente em relação ao tema. Na sequência imediata dessa medida, a reação da mídia foi bastante contundente. Os principais veículos e seus articulistas externaram grande preocupação com a decisão e com o que denominaram de “censura” ou perigo à liberdade de expressão. Segundo o Decreto 11.328, que institui a PNDD, à procuradoria compete “representar a União, judicial e extrajudicialmente, em demandas e procedimentos para resposta e enfrentamento à desinformação sobre políticas públicas”.

Ainda de acordo com o documento, a PNDD não vai “impor” medidas de polícia contra atos de desinformação ou antidemocráticos. Ela não pode, por exemplo, determinar a retirada de uma certa publicação ou obrigar a publicação de um direito de resposta. A competência circunscreve-se a acionar o Judiciário, para que ele, “caso considere correto o pedido da PNDD, determine a medida requerida”. O documento é bastante claro na especificação das atribuições competentes e no escopo de sua atuação. Não vi, em nenhum momento, onde se insere a prerrogativa de censura ou de cercea­mento à liberdade de expressão.

Acho intrigante que cada iniciativa de combater desinformação e de pautar temas pertinentes à comunicação – iniciativas conduzidas por projetos políticos alinhados ao centro-esquerda, diga-se – seja referenciada na mídia como risco à liberdade de expressão e de opinião. Muito bem, à guisa de esclarecimento, vamos aos conceitos. Antes de tudo, a desinformação precisa ser considerada, pensada, elaborada e discutida como algo sistematizado e estruturado que integra um projeto político. O fenômeno não se restringe à mera disseminação de boatos ou notícias falsas. Trata-se de um projeto de enorme alcance político – e vimos do que ele é capaz no domingo 8, em Brasília, com os ataques terroristas cultivados e muito bem preparados nas redes sociais dos bolsonaristas. Esses atos não foram aleatórios nem desconexos nem puramente resultado de ações radicais de aloprados. Foram ações terroristas elaboradas, com lideranças e discurso definidos.

Para recapitular aspectos analisados por nós, especialmente no âmbito das pesquisas desenvolvidas no Observatório das Eleições e da Democracia, vou delinear alguns elementos para clarear um pouco mais essa perspectiva. Em primeiro lugar, é importantíssimo considerar que a desinformação não está somente no âmbito das fake news. Em segundo lugar, ela deve ser considerada sob três elementos muito relevantes: a intencionalidade, o falseamento da realidade e o caráter não aleatório das ações. Tomando-se um conceito a partir da realidade brasileira, a desinformação se trata de um conteúdo totalmente falso ou falseado, baseado na realidade, intencionalmente criado e que tem o objetivo claro e definido de provocar danos – portanto, não é aleatório. Como fenômeno amplo, complexo e de várias facetas, ela se consolida nas sociedades contemporâneas, com fortes impactos em vários contextos – social, político, econômico, de saúde. E o alcance da desinformação sistematizada impacta seriamente o funcionamento da esfera pública, pois se trata de um sistema bem estruturado capaz de ressignificar e recategorizar aspectos da realidade, construindo novos sentidos para os fenômenos políticos, históricos e econômicos que levam os cidadãos a considerarem como factíveis realidades paralelas – questionando, por exemplo, a ocorrência do evento “ditadura militar no Brasil” e duvidando de preceitos científicos durante a pandemia de Covid-19.

Os atos terroristas do domingo 8 não foram aleatórios nem desconexos nem puramente resultado de ações radicais de aloprados

Refinando um pouco mais, chegamos, então, ao conceito de um ecossistema de desinformação que se consolida de modo irrefutável e preocupante no Brasil a partir de 2018. Esse ecossistema brasileiro deve ser compreendido como uma estrutura complexa e bem desenhada de produção e disseminação de conteúdo falso e falseado (ressignificado, com novos sentidos) que envolve vários atores (incluindo representantes do Poder Público) e várias etapas: produção, circulação, consumo, reprodução, criação de agendas. É um ecossistema que se estruturou como suporte a determinado projeto político e que se construiu discursivamente e simbolicamente para isso. E pudemos observar o funcionamento desse ecossistema com os atos em Brasília.

Portanto, a partir desses elementos brevemente trazidos aqui, penso que o combate à desinformação de modo efetivo, coerente e eficaz somente se dará a partir de um trabalho consonante e conjunto de várias instâncias e em interface com distintas áreas do conhecimento. Nesse sentido, não cabem críticas infundadas da mídia à ação da AGU com a criação da PNDD. A medida é imprescindível no cenário de um país que se tornou refém desse potente ecossistema. Obviamente, como ocorre – ou deveria ocorrer – em relação a outros órgãos e a outras ações do Poder Público, cabe um monitoramento, uma vigilância dessas ações, para que elas não incorram em atos autoritários. Dito isso, o que precisa estar claro é que o combate à desinformação se vincula à defesa da democracia.

E à guisa de memória, diante da reação enfática da mídia, é sempre bom lembrar alguns fatos. Na história bem recente do Brasil, a imprensa incorreu numa prática bastante questionável e bem distante da defesa da liberdade de expressão quando apoiou, sem qualquer questionamento, as ações arbitrárias e ilegais da Operação Lava Jato. Em nenhum momento daquela história recente, as práticas de lawfare e outras arbitrariedades autorizadas por Sergio Moro mereceram qualquer manifestação indignada de muitos dos articulistas dos meios de comunicação. Talvez, quem sabe, se a PNDD existisse naquele momento, a história pudesse ser outra e não estaríamos hoje a enfrentar terroristas depredadores em Brasília. •


*Jornalista, doutora em Linguística e Língua Portuguesa com foco na Análise do Discurso. É pesquisadora do Observatório das Eleições e da Democracia (INCT IDDC) e pesquisadora colaboradora do Instituto de Estudos da Linguagem (IEL/Unicamp).

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1242 DE CARTACAPITAL, EM 18 DE JANEIRO DE 2023.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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