Justiça

Quem quer liberdade absoluta não quer garantir um direito, mas sim fazer valer um privilégio

O exercício de uma liberdade tão ampla como a proposta por Monark, no extremo, se estenderia à propriedade do corpo do outro

O youtuber Monark, ex-integrante do podcast Flow. Foto: Reprodução
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O tema da liberdade de expressão tem obtido notoriedade mais pelo mau uso que dela fazem, sob o pretexto de uma garantia de direitos, do que pelo seu valor intrínseco a uma vida democrática. Recentemente, esses tropeços a que temos assistido na reivindicação desse suposto direito de liberdade receberam contribuições emblemáticas do apresentador de podcast ­Monark e do ­deputado federal Kim ­Kataguiri ­(DEM-SP), em uma conversa na qual o nazismo foi colocado sob a perspectiva da liberdade expressão e até mesmo de organização político-partidária.

Sem me ater ao teor do debate, amplamente divulgado, posso dizer que a visão do apresentador está associada a uma proposta libertarianista ou anarcocapitalista, fundamentada em uma concepção de liberdade absoluta que, ao contrário do que parece, se opõe à ideia de direito de liberdade. Quem quer liberdade absoluta não quer garantir direito de liberdade, mas sim fazer valer um privilégio.

Nas revoluções norte-americana e francesa, mas sobretudo nesta última, a ideia de direito surgiu em oposição àquela de privilégio. Os direitos implicam uma prerrogativa a ser exercida universalmente por todos, enquanto o privilégio é uma prerrogativa a ser exercida por poucos, por uma elite, por grupos detentores de poder. E, para que o direito seja exercido por todos, ele tem de ser limitado pelo próprio direito – o direito do outro. Na ciência do Direito, discute-se se essa limitação tem caráter prima facie, isto é, se ela se dá em abstrato no próprio texto da norma, ou se ela se realiza ao ser aplicada no caso concreto. De qualquer forma, é consenso que direitos precisam ser limitados, justamente para que possam se tornar universais.

A compreensão de liberdade absoluta sempre implicará a ofensa à liberdade do outro, resultando em livre opressão ou na possibilidade de os mais fortes economicamente se sobreporem aos mais fracos. A posição defendida por Monark não é nazista, mas de outro tipo de autoritarismo – o libertarianismo. E para demonstrar a inconsistência dos argumentos libertarianistas não é preciso contrapô-los a um pensamento de esquerda, mas ao pensamento liberal clássico. No Direito, a propriedade tem um sentido de uso/gozo, de disposição e reivindicação, mas para este artigo o que é fundamental é a prerrogativa de disposição, que interessa à ideia de propriedade, ou seja, quem é proprietário pode dispor daquilo que possui.

No liberalismo clássico, o direito de liberdade sempre foi associado a uma noção de propriedade do próprio corpo. A propriedade patrimonial deriva daí, pois aquele que é dono do próprio corpo pode trabalhar e, com seu trabalho, seu empenho corpóreo, ter a possibilidade de se apropriar de bens materiais. Agora, se esse é um direito universal, implica a impossibilidade de alguém ser dono do corpo do outro, pois cada um e todos têm o mesmo direito ao próprio corpo.

O exercício de uma liberdade tão ampla como a proposta por Monark, no extremo, se estenderia à propriedade do corpo do outro. Dessa perspectiva, legitima-se a existência de um partido nazista que propõe extinguir a vida de uma minoria. Ou de uma agremiação política como o Partido da Caridade, Liberdade e Diversidade, criado por libertarianistas na Holanda, que, de uma só vez, levanta a bandeira da liberdade de expressão, da legalização do sexo entre adultos e crianças a partir dos 12 anos e da permissão para posse de pornografia infantil, mais um exemplo assustador de como o exercício de uma liberdade sem limites pode resultar em aberrações inacreditáveis. Rothbard, expoente da corrente anarcocapitalista, sentenciou que os filhos são propriedade dos pais e que por essa razão poderiam ser por eles comercializados. Diversos pensadores anarcocapitalistas defendem a ideia de um judiciário e de uma polícia privados, ou seja, de que um particular exerça de forma legítima violência sobre outros corpos.

É certo que a democracia deve admitir no seu interior formas extremistas de pensamento. Tanto a extrema-direita quanto a extrema-esquerda podem organizar partidos e manifestar livremente seu pensamento e suas ideias, pois caso contrário cederá a uma espécie de ditadura de centro. No entanto, esse não é o caso do nazismo, que deve, sim, ser excluído da democracia, não por ser um pensamento extremista, mas por ter por pressuposto o cometimento de um crime de lesa-humanidade, a mesma razão pela qual deve ser excluído da democracia qualquer partido que defenda práticas pedófilas.

Não se trata de limitar o direito à livre expressão, mas de fazer valer o pressuposto de que o direito de liberdade implica sempre a observância do direito do outro. Dessa forma, o direito de livre expressão do nazismo não pode ser exercido para pregar a extinção de uma etnia, assim como não se pode reivindicar o direito de liberdade de expressão para estimular a supressão da vida de quem quer que seja. •

PUBLICADO NA EDIÇÃO Nº 1196 DE CARTACAPITAL, EM 23 DE FEVEREIRO DE 2022.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título “Liberdade de expressão”

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