Eloisa Artuso

Pesquisa, escreve, desenha projetos e estratégias, dá aulas e palestras como foco em clima e gênero na indústria da moda. É cofundadora do Instituto Febre, organização que pauta a agenda da justiça climática e direitos das mulheres no setor.

Opinião

Quem está disposto a perder seus privilégios?

Nos negócios da moda – ou fora dela – o objetivo da hegemonia é o mesmo: manter o poder nas mãos de poucos e aumentar os lucros

Quem está disposto a perder seus privilégios?
Quem está disposto a perder seus privilégios?
Das marcas de fast fashion às de luxo, o que vemos é que a exploração ambiental e a violação dos direitos humanos e trabalhistas crescem proporcionalmente ao lucro dos acionistas
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Os resultados das eleições municipais Brasil afora deixaram bastante claro o voto para manter as coisas como estão, seja pelo poder financeiro e de propaganda empregados por máquinas públicas para reeleger prefeitos, seja pelo simples desejo da população de não mudar. É medo do diferente, do “outro”? Do novo? De sair da zona de conforto? Ou de perder seus privilégios (para quem tem, ou acha que tem)? Não teve enchente catastrófica, escândalo de corrupção, multa por desmatamento e queimadas que convencesse eleitores a optarem por alternativas melhores ou pelo menos “menos piores” em alguns casos.

Com a emergência climática e seus impactos na sociedade e na economia escancarados diante de nossos olhos, a falta de interesse e prioridade por essa agenda pela maior parte dos políticos, e da própria população, me deixa bastante agoniada. As pessoas parecem não querer enxergar as coisas como elas são, mas como elas gostariam que fosse. A tal da dissonância cognitiva, que leva as pessoas a procurarem algum tipo de coerência em suas crenças e ideologias, embora a realidade as desminta com fatos.

Os desastres amplificados pelo aquecimento global ainda são considerados “coisas da natureza”, mesmo tendo sido criados pelos homens, pelos nossos modelos de produção e ideia de “progresso”, pela falta de regulamentações ambientais mais rígidas ou pela falta de fiscalização e monitoramento das existentes, e pela falta de planejamento e políticas públicas que envolvam medidas concretas de prevenção, mitigação e adaptação ao que ainda está por vir.

Isso na esfera pública, mas e no setor privado? A crença no sistema como ele está, nos discursos hegemônicos e na manutenção das estruturas de poder também segue firme e forte. Aqui, o capitalismo de shareholders (acionistas), tem como principal objetivo maximizar os lucros para os acionistas das empresas, deixando de lado, ou bem para trás, qualquer estratégia de responsabilidade social e ambiental. Ou seja, o modelo econômico que mantém o status quo dos negócios é antiecológico por natureza. ESG (Environmental, Social and Governance) está muito na moda por aqui, e pode parecer um bom caminho a ser seguido, na teoria, já na prática, pouco tem mexido nas estruturas e operações das empresas de fato.

Por falar em moda, essa indústria – desde os impactos ambientais do uso de fibras provenientes de combustíveis fósseis à imensa quantidade de resíduos têxteis produzidos no mundo – se  mostra um sistema que produz excessivamente para atender estimativas de crescimento e lucro que não cabem em um planeta de recursos finitos. Mas ainda assim tem algodão do agronegócio que insiste em se intitular sustentável e tem varejista que investe para propagar que 80% de seus produtos são “mais sustentáveis”, seja lá o que isso significa.

Das marcas de fast fashion às de luxo, o que vemos é que a exploração ambiental e a violação dos direitos humanos e trabalhistas crescem proporcionalmente ao lucro dos acionistas. Por exemplo, a ultra fast fashion Shein, que na última década passou de uma marca pouco conhecida para uma das maiores varejistas do mundo, dobrou seus lucros para mais de US$ 2 bilhões em 2023. Mas enquanto a marca desenha um plano para entrar na Bolsa de Londres, ela continua perseguida por alegações de trabalho análogo a escravo em sua cadeia de fornecimento, como na região algodoeira de Uigur na China. Do lado ambiental, as preocupações foram reforçadas pelo terceiro relatório anual de sustentabilidade da própria empresa divulgado esse ano, apontando que suas emissões de dióxido de carbono quase dobraram entre 2022 e 2023.

Na outra ponta, vemos que o mercado de luxo não fica para trás. Investigações mostram como a Dior e a Gucci deixaram mais de 150 trabalhadores romenos na mão depois de um leve aumento no salário mínimo do país. Enquanto marcas desse patamar gastam muito em campanhas para convencer as pessoas de que suas roupas são produzidas de forma ética, Dior, Gucci e Tod’s negaram pagar indenizações ou dar apoio a esses trabalhadores, que perderam seus empregos repentinamente em 2023 com o fechamento forçado da fábrica Selezione, ocasionado pelo término de pedidos de produção.

O salário mínimo da Romênia, que está bem abaixo de um salário justo para viver, diga-se de passagem, parece ser muito alto para essas empresas. Para produzir um par de sapatos de uma marca de luxo com essas o trabalhador ganha em média 0,14 euros, enquanto o mesmo produto é vendido em média por 595,00 euros. Saibamos que Bernard Arnault, CEO e presidente do Grupo LVMH, detentor da Dior, e François-Henri Pinault, presidente do conglomerado Kering, que abriga a Gucci, figuram entre os homens mais ricos do mundo. Alguma surpresa?

Mas afinal, quem está disposto a mexer nessas estruturas de poder e perder seus privilégios? Bem-estar coletivo, igualdade e justiça não têm espaço para florescer em um modelo econômico que é, por essência, patriarcal, racista e classista. Modelo esse que aceita que o esgotamento ambiental e a exploração do “outro” sejam necessários para o “desenvolvimento”, o “progresso” e o “sucesso” nos negócios.

A verdade é que sem o desmantelamento do sistema da moda e sem uma reestruturação radical da economia, não haverá ́ possibilidades reais de uma produção de vestuário sustentável e, no limite, um futuro vivível. Sigamos procurando brechas nessas estruturas sufocantes que nos permitam imaginar outras realidades e acelerar a transição para novas lógicas e novas formas de estar na Terra, com uma pegada muito mais leve. E que possamos enfrentar os desafios do século XXI com os recursos necessários para isso, e com a balança pendendo para o lado dos 99%.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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