Opinião

Que voltemos a ser soberanos no 2 de outubro

Desconhecer essa realidade impede chegar ao âmago da política e discutir projetos comuns de nação

O ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT) durante discurso no município pernambucano de Serra Talhada. Foto: Reprodução
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“A qualidade da pessoa realmente virtuosa é a de ser desconhecida das outras pessoas, ou incompreendida pelos outros, mas sem ficar desapontada por isso.” – Sabedoria chinesa.

A morte do último presidente da União Soviética, Mikhail Gorbachev, na semana passada, reavivou o debate sobre os rumos do socialismo em âmbito internacional.

O pai da “glasnost” e da “perestroika” (transparência e democracia, respectivamente, em tradução livre) deve ter sido uma das pessoas mais incompreendidas do século passado. O que não é dizer pouco, em se tratando de período de inúmeras guerras e genocídios.

A divisão da esquerda levaria ao fim do mandato dele e da própria União Soviética, que, a bem da verdade, andava muito mal.

Com efeito, foi o golpe de estado perpetrado pelos setores conservadores do Partido Comunista da União Soviética (PCUS) que levou ao contragolpe do Ocidente e à ascensão de um fantoche, Boris Ieltsin, que destruiria o país, nos moldes do que se fez e faz por aqui sob os desgovernos oriundos do golpe de estado de 2016.

País de tradição burocrática, com estado onipresente, a cultura russa terminou por se impor ao “socialismo real”, vítima também da contrarrevolução, de Stalin e de Hitler. Não é pouco, mesmo para um povo heroico.

Quando os setores mais progressistas do PCUS perceberam que aquela estrada autoritária só levava ao fracasso e conseguiram impor – ainda que temporariamente – a própria hegemonia aos conservadores, Gorbachov emergiu à frente das tão necessárias reformas. Entretanto, já era tarde e o contragolpe conservador jogaria a pá de cal sobre toda e qualquer esperança de reforma.

Interessante notar que a história da Rússia e do Brasil guarda algumas semelhanças no século anterior, o XIX.

Em “Dostoievski”, de Joseph Frank, editora EDUSP, verificamos que, no século 19, as reivindicações mais progressistas do Círculo de Petrachévski, grupo de intelectuais integrado também pelo autor russo, identificavam: “…três problemas de suma importância sociopolítica: a abolição da censura, a reforma do sistema judiciário e a libertação dos servos. Qual deles seria o mais urgente? Qual deles seria o mais prioritário do ponto de vista dos que lutavam pelo progresso? Sua resposta, formulada com grande habilidade, foi que a reforma do sistema judiciário deveria ser classificada como a meta mais importante e mais urgente.”

Após a fraudulenta Lava Jato, por aqui, verificamos nosso atraso em mais de um século com relação a essa prioridade.

Essa semelhança entre os desafios colocados para o Brasil e a Rússia talvez seja o motivo de nossa tão grande identificação com a literatura de Dostoievski.

Naquela mesma obra, Frank cita que, resenhando o conto do irmão “Coração Frágil”, Mikhail Dostoievski observa a respeito dos personagens: “[…] estão de tal maneira resignados a um destino esmagador […] que consideram suas ocasionais alegrias como a manifestação de alguma coisa sobrenatural, como um desvio ilícito do curso ordinário das coisas. […] Por isso, até mesmo essas poucas alegrias são veneno para eles, […porque] as circunstâncias da vida os humilharam até mesmo aos seus próprios olhos.”

O biógrafo complementa, sobre um dos personagens do conto: “Em outras palavras, Vássia tinha apanhado tanto da vida que a conquista até mesmo da mais simples e natural satisfação humana bastava para inspirar-lhe sentimento de culpa.”

No momento em que 56% da população brasileira declara que não separa rigidamente política e religião, Frank também chega a interessante conclusão a respeito do biografado: “É evidente que Dostoievski não abandonou de forma alguma a concepção romântica e idealista da arte como uma coisa que se pode distinguir da religião pela forma, mas não pela substância; aliás, nunca viria a fazê-lo.”

Em um país tão espiritualizado como o Brasil, os temas ligados à religiosidade jamais deixaram de ser pauta política e talvez possamos dizer o mesmo do Chile, que, ontem, em plebiscito, rejeitou a nova constituição, com base em sentimentos profundamente conservadores de parte da população.

Desconhecer essa realidade impede chegar ao âmago da política e discutir projetos comuns de nação.

Às vésperas do 7 de setembro, vale recordar Eduardo Galeano, em “As caras e as máscaras” (editora Nova Fronteira): “1879 – Cidade do México – Os socialistas e os índios…Segundo o socialista Santa Fé, que desencadeou a insurreição dos índios do Vale de Texmelucan, os males do México vêm da miséria do povo, que por sua vez vêm do acúmulo de terras em poucas mãos e da falta de indústria nacional, ‘porque tudo nos chega do estrangeiro podendo nós fazê-lo’. E se pergunta: ‘Devemos preferir perder a independência e ser uma colônia norte-americana…?…Ao mesmo tempo, os camponeses da Sierra Gorda difundem seu ‘plano socialista’. Acusam o latifúndio despojador, raiz de toda desgraça, e os governos que puseram os índios a serviço dos latifundiários. Propõem que se declarem ‘povoados’ as fazendas, restituindo a propriedade comunitária de terras de lavradio, águas, montes e pastos.”

Que este 7 de setembro, que nos encontra infelizmente colônia, encontre-nos País soberano no 2 de outubro, a nós e a toda a América Latina e o Caribe, desprovidos da ignorância, do medo, do engano e da violência, fazendo política com visão de nações multiculturais que somos.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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