Opinião

Que o multicentrismo nos leve cada vez mais à cooperação entre as nações e os povos

Com a busca de um cessar-fogo na Ucrânia, a África se coloca no topo do fazer diplomático da atualidade

Imagem: Ministério das Relações Exteriores
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“Eu só ando de gravata mesmo porque diplomata é um ser de gravata, não há nada a fazer. Detesto tudo que me aperta.” – Vinicius de Moraes

Foi excelente o discurso do presidente Lula na cúpula do G7, em Hiroshima, no Japão. A fala presidencial teve a grandeza de mencionar a situação extrema em que vive atualmente o Haiti e as dificuldades financeiras por que passa a Argentina – essas, causadas por políticas erráticas, praticadas pelos organismos financeiros internacionais.

Compreensivelmente, a rapidez com que a cena internacional se transmuta não permite a completa apreensão em uma única fala.

Pior, como pano de fundo, temos o anacronismo da Organização das Nações Unidas (ONU), não apenas incapaz de promover a paz, mas também a justiça socioeconômica, em âmbito internacional.

Nesse sentido, a reforma do Conselho de Segurança, subjacente à alocução presidencial soa, de certa maneira, obsoleta, sendo inócua a reforma de edifício condenado, nas bases.

Com efeito, um mero e incompleto recorte diplomático da semana passada – de molde fotográfico – permite aferir como a realidade internacional evolui rapidamente.

Em primeiro lugar, vê-se uma tendência clara ao policentrismo, com novos atores ampliando o vetusto elenco diplomático, antes limitado ao Norte.

O primeiro – porém tradicional – novo ator: o Vaticano. O Papa Francisco, claramente, é a principal personalidade da atualidade.

No domingo 21, o Vaticano informou que Francisco enviará o presidente da Conferência Epicopal Italiana (CEI), o arcebispo de Bolonha, cardeal Matteo Zuppi, a Moscou e Kiev, tentando facilitar o diálogo entre ambas as capitais.

Trata-se de medida marcada pela inteligência: o enviado papal tem a investidura da principal e mais forte conferência episcopal, a italiana; ao lado disso, sendo o pastor de Bolonha, a “vermelha”, traz a credencial de diálogo histórico a esquerda, fundamental para abrir portas no Kremlin; demais, poderá usar não apenas o chapéu estatal, mas também o de sociedade civil, ampliando em muito a potência das gestões papais.

Considerando que no Brasil está a maior conferência episcopal da Igreja Católica, a Conferência Nacional dos Bispos do Brasil (CNBB), essa pode ser uma oportunidade única tanto para a CNBB quanto para o Itamaraty se somarem àquela importantíssima iniciativa diplomática.

Contemporaneamente, o ministro das Relações Exteriores da África do Sul também anunciou missão de seis chefes de Estado africanos a ambas aquelas capitais em guerra. A viagem em apreço já conta com o apoio dos Estados Unidos da América e do Secretário-Geral da ONU.

Deverão integrá-la os presidentes do Egito, de Uganda, da Zâmbia, do Senegal e da República do Congo. Por sua vez, os presidentes da Rússia e da Ucrânia já concordaram em recebê-los.

O objetivo do grupo de alto nível é conseguir a paz ou ao menos um cessar-fogo entre os beligerantes.

Nos próximos dias, o chanceler da África do Sul irá encontrar o homólogo português, para sensibilizar o bloco europeu.

Talvez essa também seja uma boa oportunidade para o Brasil apoiar aquela iniciativa que, sendo coletiva, tem maiores chances de êxito.

Com ela e desde já, a África se coloca no topo do fazer diplomático da atualidade.

De sua parte, Sergey Lavrov, chanceler russo, assegurou a abertura da Rússia às iniciativas de paz da África e da América Latina. Quem sabe nos juntamos todos os latino-americanos, caribenhos e africanos em prol da paz mundial?

Não nos falta peso político: o professor da Unicamp Márcio Pochmann demonstra que o Produto Interno Bruto (PIB) dos cinco países dos Brics já ultrapassou aquele dos sete, do G7, que, ao contrário do que se pensa, é, em primeiro lugar, um agrupamento político mais do que econômico. Com efeito, o Brasil mesmo no período em que foi a sexta economia do mundo não foi chamado a integrá-lo, ao contrário do Canadá, que, então, era a oitava.

Uma ulterior demonstração da maturidade africana: o continente tem conseguido manter à distância do conflito interno sudanês as ex-potências coloniais, por ele responsáveis, na medida em que as forças milicianas sudanesas são abastecidas de armas e combustíveis pelos milicianos líbios que dominam o leste da Líbia, os quais, por sua vez, chegaram ao poder por mãos e armas ocidentais.

Vale notar que o silêncio ocidental sobre as iniciativas africanas chega a ser eloquente. Em Bloomsbury, de Quentin Bell (editora Ediouro), entendemos: “O sucesso nunca é, em si próprio, uma qualidade estimada…”

Que importante a África tomar a pulso seu destino no contexto global!

Sem adiar a paz e a justiça entre as nações e os seres.

Com efeito, em Carpe Diem (editora Zahar), de Roman Krznaric, temos uma bela explicação sobre o não procrastinar: “A procrastinaçâo é o arqui-inimigo do ‘carpe diem‘. Isso está evidente em sua etimologia: ‘pro‘ é a palavra latina para ‘enviar’, ao passo que ‘crastinus‘ significa ‘pertencente ao amanhã’. Junte-as, e temos ‘enviar para amanhã’…”

Na mesma obra, sobre o poder da cooperação, Roman elabora: “Um dos exemplos mais fascinantes – embora relativamente desconhecido – dessa tradição é o anarquista russo Piotr Kropotkin. Ele nasceu em 1842, numa família aristocrática que possuía 1.200 servos e várias propriedades, e estudou em uma academia militar de elite, onde foi escolhido como ‘page de chambre’ pessoal do Czar Alexandre II. Entretanto, Kropotkin…abandonou completamente suas origens de classe alta, reinventando-se como ativista e intelectual revolucionário cujos livros proféticos contestavam a imagem do anarquismo como ideologia niilista e violenta, dando-lhe uma sólida base filosófica e científica. Entre eles estava ‘Ajuda Mútua‘, que contestava o darwinismo argumentando que a cooperação era uma força evolucionária mais robusta na natureza que a competição (ideia muito em voga atualmente).”

Que o multicentrismo nos leve cada vez mais à cooperação, inclusive e principalmente entre as nações e os povos!

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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