Justiça

Quanto custa uma liberdade?

As fianças para soltura são um marco da desigualdade que atravessa os presos pobres e miseráveis

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Sim, a pergunta apresentada no título pode chocar os que devem ser considerados como ingênuos, mas a verdade é que, no modelo de (in)justiça criminal brasileiro, a liberdade ambulatória, a depender do caso, pode ser efetivamente comprada e o recibo dessa aquisição é uma guia de depósito judicial.

A qualificação utilizada para quem se espanta com esse negócio não se relaciona com o eventual desconhecimento de normas processuais que versam sobre a fiança. O cerne da questão, na verdade, vai além do âmbito jurídico, pois indica a completa incompreensão da atual realidade, ou melhor, um verdadeiro estado de alienação frente ao modo de viver hegemonicamente imposto.

Vive-se uma realidade predatória e antropocêntrica, que se mostra capaz de colocar em risco o próprio futuro da humanidade, tal como apontado por Leonardo Boff e Mark Hathaway no delírio que se tornou o atual existir:

(…) acreditamos que há uma patologia aguda que é intrínseca ao sistema que atualmente domina e explora o mundo (…) De certa maneira, nós estamos vivendo uma forma de alucinação coletiva na qual aquilo que é ilógico e destrutivo parece ser normal e inevitável.” (BOFF, Leonardo & HATHAWAY, Mark. O Tao da libertação. Explorando a ecologia da transformação. 2. ed. Petrópolis: Vozes, 2012. p. 51).

Nesse modelo hegemônico, as pessoas somente são consideradas como dignas caso possam participar do culto ao deus-mercado, isto é, ser gente virou sinônimo de ser consumidor. Todavia, a exploração destrutiva ao meio ambiente e o aprofundamento das desigualdades sociais impedem a participação de todos nesse festejo. Enquanto a minoria dos privilegiados dançam cercados de seguranças e outras formas de vigilância, a maioria se vê distante do trio elétrico e implora por migalhas que são oferecidas na precarização da vida para que, assim, sejam tolerados pelos consumidores. Quem serve o consumidor não é gente, mas é tolerado.

Maldito é aquele que sequer serve para servir o consumidor, ele é um ninguém que foi descrito por Eduardo Galeano:

(…) Que não são, embora sejam.

Que não falam idiomas, falam dialetos.

Que não praticam religiões, praticam superstições;

Que não fazem arte, fazem artesanato.

Que não são seres humanos, são recursos humanos.

Que não tem cultura, e sim folclore.

Que não têm cara, têm braços.

Que não têm nome, têm número

Que não aparecem na história universal, aparecem nas páginas policiais da imprensa local

Os ninguéns, que custam menos do que a bala que os mata.” (GALEANO, Eduardo. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 2016. p. 71)

A partir dessa concepção economicista do que é ser gente, o não-consumidor, aquele que não é gente, passa a ser considerado como um estorvo, um incômodo aos que bailam em seus espaços muito bem protegidos e blindados. Em razão dessa irritação causada por quem é considerado um fracassado, resta ao sistema de injustiça criminal o papel de afastá-los, de segregá-los, pois a celebração não pode parar.

Muito embora não o nomine como injusto, não é diferente o entendimento assumido por Rubens Casara quanto ao papel do controle penal na sociedade que tem no consumo o elemento definidor da humanidade:

Em vez da propalada dinâmica libertária, o neoliberalismo levou a mais uma espécie de despotismo, uma ditadura do mercado, em que se dá a imposição coercitiva – e o Sistema de Justiça Criminal serve a essa coerção – das leis de mercado. Na pós-democracia não existem obstáculos ao exercício do poder e as garantias fundamentais também são vistas como mercadorias que alguns consumidores estão autorizados a usar.” (CASARA, Rubens R. R. Estado pós-democrático. Neo-obscurantismo e gestão dos indesejáveis. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2017. p. 41).

Em um país tão desigual em que pessoas em situação de rua, desempregadas, catadoras do lixo descartado por quem é gente e dependentes químicas furtam cabos para, assim, conseguir uma pedra de crack, um papelote de cocaína ou qualquer outra droga ilícita ou então gêneros alimentícios em mercados, como se pode imaginar a fixação de fianças em valores exorbitantes? Qual é o sentido, por exemplo, em arbitrar – e esse caso é verídico – uma fiança no valor de R$ 1.500,00?

Rio de Janeiro – Fuzileiros Navais participam de operação na favela Kelson’s, zona norte da cidade (Fernando Frazão/Agência Brasil)

E aqui nem se está a discutir se foi 1 centímetro como várias vezes apontada no auto de prisão em flagrante ou mais de 1 metro. Aliás, além da necessidade de uma aquisição, por meio de licitação pública, de trenas, há de se questionar esse descaso com escalas métricas nesse momento em que tanto se brada pela necessidade de se resguardar a independência da investigação policial.

Um outro dado deve ser trazido, pois o Superior Tribunal de Justiça determinou, nos autos do habeas corpus nº 568.693, que não seria possível a manutenção de pessoas presas pelo motivo de não terem recolhido as fianças arbitradas em sede policial ou mesmo judicial. Diante da extensão concedida em sede liminar, há de se defender, inclusive, que não se pode pensar em fiança nesse momento de crise sanitária.

Ainda que motivado pelo cenário pandêmico, tanto que há relação com a Recomendação nº 62, Conselho Nacional de Justiça, o citado Tribunal Superior impediu que uma insólita situação se perpetuasse, qual seja, juridicamente a pessoa se encontra solta, mas, na realidade, privada de sua liberdade. Tratava-se de um típico caso de prisão por dívida cuja origem não é alimentar.

Ninguém em sã consciência – mesmo nessa época em que parcela da sociedade se encontra dividida para quem deverá render suas homenagens e considerar como o verdadeiro herói ou salvador da Pátria – deseja ficar no cárcere. O não pagamento da fiança é a prova cabal de que se trata de alguém que não pode consumir, que não pode literalmente comprar a sua liberdade.

Quem sabe outras e mais brilhantes mentes possam melhor explorar essa situação à luz de institutos jurídicos e esse exame dogmático coteje essa realidade com a dignidade da pessoa humana (e não do consumidor), com o Estado de Coisas Inconstitucional reconhecido pelo Supremo Tribunal Federal e que define o sistema prisional brasileiro ou, até mesmo, com a figura do abuso do direito.

Para os fins desta provocação, a trilha desbravada foi outra. É denunciar essa maligna equação composta pelos fatores: fixação de um preço para a liberdade e a incapacidade de arcar com esse valor. O resultado é a dor, o sofrimento, é o cárcere de quem é declarado constitucionalmente como gozador do estado de inocência.

A despeito de problematizar sobre as memórias do campo de concentração, Primo Levi pode indicar a trilha explicativa para quem adota a postura típica de um magistrado romano com poderes na Judeia e responsável por um julgamento paradigmático para a civilização ocidental. Ao arbitrar um valor exorbitante que, de antemão, sabe não será recolhido, as mãos são lavadas, pois a “justiça” foi feita:

Geralmente é difícil negar que se tenha cometido uma dada ação, ou que tal ação tenha ocorrido; ao contrário, é facílimo alterar as motivações que nos induzem a uma ação, assim como paixões que em nós acompanharam a ação mesma” (LEVI, Primo. Os afogados e os sobreviventes. Os delitos, os castigos, as penas e as impunidades. 3. ed. São Paulo: Paz & Terra, 2016. p. 22).

Assim, magistrados e delegados, ao se valerem desse expediente, tão-somente manipulam as razões para a fixação de valores absurdos que, como já dito, sabidamente não serão recolhidos. O manejo da linguagem jurídica é a forma encontrada para tentar esconder a perversa inserção na sociedade de consumo onde, até mesmo uma liberdade, pode ser comprada. A pandemia e a decisão citado do STJ podem permitir uma mudança, ainda que minúscula tal como um fio de cobre de 1 cm, no sentido de que a comunidade jurídica, ao ser questionada, afirme: a liberdade não tem preço!

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