Luana Tolentino

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Mestra em Educação pela UFOP. Atuou como professora de História em escolas públicas da periferia de Belo Horizonte e da região metropolitana. É autora dos livros 'Outra educação é possível: feminismo, antirracismo e inclusão em sala de aula' (Mazza Edições) e 'Sobrevivendo ao racismo: memórias, cartas e o cotidiano da discriminação no Brasil' (Papirus 7 Mares).

Opinião

Quando um negro morre de ‘bala perdida’, parte de uma mãe negra morre também

A culpa é dessa sociedade estúpida, racista e violenta em que vivemos. Que mata negros e mães negras com indisfarçável desprezo

Kathleen Romeu. Créditos: Divulgação Créditos: Divulgação
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“Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar…” Chico Buarque

Ao longo dos últimos 12 meses, registrei neste espaço minha tristeza, minha indignação em relação à política genocida que extermina pretos, pobres e favelados neste país. Não é uma tarefa fácil. É difícil, doloroso, escrever sobre o desumano, sobre o absurdo, sobre a barbárie, sobre a morte da minha gente. O racismo rouba de nós, negros, até o direito de escrever amenidades.

Em maio do ano passado, enderecei uma carta ao garoto João Pedro, assassinado ao ter o lar invadido e alvejado por mais de 70 tiros. Conforme determina os protocolos de segurança da Organização Mundial de Saúde (OMS), João estava em sua casa, que fica em uma comunidade de São Gonçalo/RJ, quando foi surpreendido por uma operação policial que não lhe permitiu alcançar sequer a maioridade.

Um ano depois do crime, as investigações da Polícia Civil não conseguiram identificar os algozes de João, o que corrobora as estatísticas de que raramente crimes como esse são punidos. Indiciados pelo Ministério Público, três policiais alegam que agiram em “legítima defesa” durante perseguição a supostos traficantes que, ao fugirem, teriam pulado o muro da residência. Essa versão é contestada pela família, que nega ter havido troca de tiros, mas ainda que seja verdadeira, fica a pergunta: será que é admissível invadir uma casa sem mandado judicial e matar um menino inocente sob o pretexto de deter traficantes e apreender uma porção de droga?

Pouco antes do Natal, amparada pelos versos dos Racionais MC’s, escrevi sobre o assassinato das primas Emily e Rebecca, de 4 e 7 anos, que foram atingidas por um tiro de fuzil enquanto brincavam na porta de casa, em uma comunidade de Duque de Caxias, na Baixada Fluminense. O tiro acertou a cabeça de Emily, o coração de Rebecca e destroçou duas famílias. Há suspeitas de que os disparos tenham partido de uma viatura da Polícia Militar.

Mais uma vez, vejo-me às voltas com um texto a respeito do projeto de nação que tem como objetivo negar aos negros o direito ao bem-viver. Na terça, Kathlen de Oliveira Romeu foi baleada enquanto passeava com a avó pelas ruas da comunidade Lins de Vasconcelos, na Zona Norte do Rio. Policiais disseram que houve troca de tiros com criminosos, mas testemunhas afirmam que no momento do disparo não havia qualquer confronto. Kathlen, que era designer de interiores e modelo, estava grávida de quatro meses. Uma bala ceifou sua carreira, seus sonhos, seu direito de gerar uma vida.

Quando vem a público a notícia de que uma negra ou negro foi vitimado pela política de caça aos pretos que impera no país, penso sempre nas mães. Na dor das mães negras. Penso nessas mulheres que educam seus filhos e filhas para viver de acordo com as regras ditadas pela sociedade racista. Quando se trata de meninos, orientam em relação ao corte do cabelo, às roupas, às amizades. Lembram do documento de identidade e da carteira de trabalho que devem estar sempre no bolso. Elas sabem que a cor da pele coloca seus filhos em estado de suspeição permanente. Sabem também que qualquer deslize pode ser fatal, que para os negros não há perdão.

São mulheres que passam a vida assombradas pela violência policial que pode matar seus filhos, conforme escreveu brilhantemente Lélia Gonzalez: “Ser mãe negra numa sociedade como a nossa, desde a época da escravidão, é ver o filho – o filho, o companheiro, o irmão, seja lá quem for – sair para o trabalho, para a escola e não saber se ele volta (…). Nós, mães negras, vivemos experiências muito duras, muito terríveis, que um companheiro do Movimento Negro de Minas Gerais chamou de terror cotidiano. Enfim, não existe uma mulher negra que não tenha vivenciado, com um dos membros masculinos que faça parte da sua convivência, essa experiência de violência policial”.

Em função da violência racista, mães negras sentem na pele e na alma experiências extremamente cruéis, injustas, que as desumanizam. Somente em 2020, 78% dos assassinatos cometidos por policiais tiveram como alvo pessoas negras.

Cada vez que um negro morre de “bala perdida”, parte de uma mãe negra morre também. Morre quando, mesmo depois de todos os esforços para proteger os filhos, não consegue mantê-los vivos. Morre diante da indiferença e do silêncio conivente de parte da sociedade. Morre em razão da falta de respostas e de punição para os responsáveis pelo assassinato de seus filhos. Morre quando tem de provar que não existe pena de morte no Brasil.

Uma parte, um pedaço das mães negras morre quando elas precisam apontar a barbaridade da criminalização da pobreza, que incute no imaginário social a falsa ideia de que os moradores de favelas são bandidos que devem ser executados. É o que nos diz o depoimento da avó da Kathlen. Levo em consideração uma máxima que aprendi desde cedo: avó é mãe duas vezes. Durante entrevista concedida ao Jornal da Band, dona Saionara disse: “A gente não tem culpa de nada. Ela era trabalhadora. Ela foi criada em favela, mas trabalhava. Ela era estudada, formada. As amizades dela, tudo boa… para eu perder minha neta nesse mundo estúpido, nesse tiroteio estúpido”.

Repito o que escrevi em uma rede social: Dona Saionara, a senhora e a sua família não têm culpa de nada. A culpa é dessa sociedade estúpida, racista e violenta em que vivemos. Que mata negros e mães negras com indisfarçável desprezo.

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