Opinião

Qual a diferença entre o jornalismo ocidental e a mídia estatal russa?

Um episódio a envolver o ‘New York Times’ suscita a pergunta

Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, fala em um telão gigante instalado em Florença, na Itália. Foto: Carlo BRESSAN / AFP
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Quem levantou a lebre no Twitter foi Sergio Leo, jornalista que faz falta em qualquer redação e em qualquer tempo, especialmente nos dias atuais. Trata-se de uma troca de e-mails entre Candace Owens, que decidiu expor a conversa nas redes sociais, e um ou uma repórter do New York Times (sua identidade foi mantida em segredo).

Owens é uma apoiadora fanática de Donald Trump, reacionária, oportunista (distorce o debate racial), antivacina e provavelmente terraplanista. O New York Times, bem, é o New York Times, um dos jornais mais celebrados do planeta, de reconhecidos serviços prestados aos direitos civis e individuais nos quatro cantos da Terra. Dispensa apresentações.

Não se deixe, porém, levar pelo histórico dos oponentes.

No caso em questão, a invasão da Ucrânia, a apresentadora de um podcast de ultradireita, o The Candace Owens Show, revela uma sobriedade que falta ao vetusto diário – e à maioria de seus pares na metade oeste do globo.

A primeira mensagem do ou da repórter do NYT é típica. De quais fontes Owens, quis saber, havia colhido informações sobre a corrupção e a infiltração neonazista no governo da Ucrânia? As declarações, afirma o jornalista, eram muitos semelhantes às acusações da mídia estatal russa. Em outras palavras: teria sido a apoiadora de Trump cooptada pelo discurso facínora de Vladimir Putin? Lembrete: a Rússia foi acusada de interferir nas eleições presidenciais dos Estados Unidos em 2016 em favor de Trump. O republicano nunca escondeu sua simpatia pelo ex-agente da KGB. Entende-se, portanto, aonde o jornalista queria chegar.

https://twitter.com/RealCandaceO/status/1506004049061195778

Owens não se intimidou. Em dois e-mails sequenciais, ela se declara surpresa com as perguntas e informa: tudo o que sabia sobre a corrupção no governo ucraniano e a influência neonazista no país do leste Europeu aprendera não com a mídia estatal russa, mas a partir da leitura de reportagens e editoriais do próprio New York Times. Para não deixar dúvidas, a apresentadora anexou uma lista de textos publicados pelo jornal com relatos de escândalos, má gestão e infiltração neonazi na Ucrânia. Owens não publica a réplica, se houve, mas a conversa parece ter se encerrado neste ponto.

Até este momento, o NYT continua a ignorar suas próprias apurações no passado recente para não atrapalhar a “narrativa” do herói imaculado, Volodymyr Zelenski, defensor do Ocidente em sua cruzada contra o déspota Vladimir Putin. Uma história do bem contra o mal que não admite nuances ou contradições – embora seja perfeitamente cabível apontar os crimes de Putin, sua ambição e seus erros, sem deixar de entender as causas do conflito e a responsabilidade de outros personagens envolvidos.

Desde o Vietnã, os governos e os exércitos aprenderam que tão importante quanto avançar no campo de batalha é controlar a informação. Nunca o mais o jornalismo conseguiu furar esse bloqueio e influenciar de maneira decisiva a opinião pública. Nas últimas décadas, salvos raros momentos, a omissão foi a regra, e o descaso, norma. Como as guerras se deram sobretudo no Oriente Médio e na África, longe dos olhos azuis da porção branca do planeta, a recusa dos meios de comunicação em cumprir suas funções públicas não passou de um efeito colateral sem maiores consequências, eventualmente um problema de orçamento. Agora que o conflito se dá entre “iguais”, a poucos quilômetros do conforto da sala de estar de franceses e alemães, e virar as costas ou apostar em uma cobertura burocrática está fora de questão, a mídia ocidental decidiu rasgar a fantasia. Vamos à guerra, conclamam minuto a minuto.

Nem foi preciso um telefonema das autoridades. As próprias empresas trataram de fuzilar o contraditório, bombardear a verdade factual. Quem ousa pensar, ponderar, analisar, corre o risco de ser acusado de “crimes de guerra”. Putin é mal, Zelensky é bom. Putin é Thanos, Zelensky, o Homem-de-Ferro. As nuances atrapalham. O público não entenderia uma disputa entre dois vilões, não é? Pior ainda se alguém lembrar que não se trata de um filme de ação, mas de um confronto de consequências decisivas para a ordem mundial, ressentimentos seculares e movimentos calculados. O negócio é simplificar. Mobilizar. Qual a diferença, no fim das contas, para a mídia russa controlada pelo Kremlin?

Depois não adianta reclamar, atribuir a decadência às redes sociais, às big techs ou ao desinteresse das novas gerações. Ser obrigado a dar razão a uma fanática como Owens em uma pendenga com o New York Times é sinal dos tempos.

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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