Gustavo Freire Barbosa

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Advogado, mestre em direito constitucional pela Universidade Federal do Rio Grande do Norte. Coautor de “Por que ler Marx hoje? Reflexões sobre trabalho e revolução”.

Opinião

A guerra na Ucrânia não deve ser encarada como um filme da Marvel

Mitificar a figura de Zelensky como o herói improvável, o novo Churchill disposto a enfrentar os vilões de Rocky, não ajuda em nada

Volodymyr Zelensky, presidente da Ucrânia, fala em um telão gigante instalado em Florença, na Itália. Foto: Carlo BRESSAN / AFP
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A guerra na Ucrânia tomou os noticiários de um jeito em que a indiferença virou algo impossível. Diferente do cerco histórico que Israel faz aos palestinos e dos recentes bombardeios contra somalis e iemenitas, a empatia e a solidariedade em favor dos ucranianos, embora corretas, não podem ser um obstáculo às tentativas de analisar os processos históricos correspondentes, qualificar o debate e, enfim, criar condições para entender as origens da guerra inclusive para pôr fim a ela.

O pacifismo abstrato, embora ofereça uma resposta moral que satisfaz quem condena a violência por princípio, não ajuda a compreender suas causas e até sua justeza, tal qual a das guerras anticoloniais do século XX.

Em artigo publicado na edição da Folha de S. Paulo de 28 de fevereiro, Diogo Bercito compilou algumas afirmações racistas da imprensa sobre a guerra. Segundo o jornal britânico Telegraph, os ucranianos “são como a gente”, razão pela qual a guerra em seu território choca tanto. Os moradores de Kiev, afinal, são assinantes da Netflix e possuem contas no Instagram. Nessa esteira, um correspondente da norte-americana CBS qualificou Kiev como “uma cidade relativamente civilizada, relativamente europeia”, de modo que não é esperado que uma guerra acontecesse em seu território.

A BBC de Londres, por sua vez, veiculou depoimento de uma pessoa emocionada por ver “europeus de olhos azuis sendo mortos todos os dias”. “Eles se parecem com qualquer família europeia que poderia viver na casa ao lado”, disse um comentarista da transmissão em inglês da rede Al Jazeera.

As conclusões de Bercito são contundentes: “só com essa empatia toda é que as pessoas conseguem construir essa imagem de cidadãos heróicos empunhando armas nas ruas de Kiev. Quando são os sírios lutando em Damasco, ou os iemenitas aquartelados em Sanaa, eles geralmente aparecem apenas representando o papel de selvagens e de terroristas”.

Um homem passa por uma tela de transmissão digital transmitindo notícias do conflito entre a Rússia e a Ucrânia na Bolsa de Valores de Bombaim (BSE) em Mumbai em 24 de fevereiro de 2022. Foto: Indranil MUKHERJEE / AFP

“É essa atitude, em resumo, que ajuda a entender por que é que, de repente, o mundo inteiro parece disposto a receber e amparar os refugiados, desde que eles sejam ucranianos, europeus e parecidos conosco. Loiros, de olhos azuis. Já sírios, iraquianos, afegãos, sudaneses —esses não. Afinal, ser refugiado é a natureza deles. Não há novidade, não há nada de indignante”, finaliza.

Bercito traz uma questão relevante que ajuda qualificar o debate não apenas sobre a guerra em si, mas acerca da forma com que o consenso está sendo construído sobre ela. Com efeito, a mobilização da opinião pública passa tanto pela censura de veículos de comunicação russos na Europa ocidental como pela liberação de elogios a neonazistas anti-russos em redes sociais.

Fecha-se, assim, qualquer possibilidade de debate que leve em conta o expansionismo militar da OTAN – esta, sim, com uma ficha corrida de sucessivos bombardeios nos últimos trinta anos – que contraria compromissos como o assumido por James Baker, Secretário de Estado do governo Bush em 1989, segundo o qual a OTAN não avançaria para o leste. Tampouco abre-se margem para discussão sobre a pública indisposição dos EUA em impedir conflitos bélicos ao sair de tratados como o “Open Skies”.

Em 2020, os EUA também rejeitaram a proposta da Rússia de prorrogar um tratado que limitava a mobilização de armas nucleares. Sendo a OTAN um braço militar do país norte-americano que já avançou sobre países bálticos e agora busca ocupar a Ucrânia, sua integração às forças militares ocidentais permite que esse tipo de armamento passe a existir em solo ucraniano, ou nas fronteiras com a Rússia. Convém imaginar o que os EUA fariam se algo semelhante acontecesse nas suas fronteiras com o México e o Canadá. A crise dos mísseis de 1961 em Cuba nos ajudar a responder essa questão.

Também é importante considerar o papel dos EUA na desestabilização política da Ucrânia a partir de 2014, onde um governo democraticamente eleito foi deposto e os protestos do Euromaidan, hegemonizados por setores de direita integrados por movimentos neonazistas como o Pravy Sektor, que chegaram a incendiar a Casa dos Sindicatos de Odessa e matar mais de quarenta pessoas.

O Batalhão Azov, outra proeminente organização neonazista, não só está na linha de frente no enfrentamento contra os russos, mas foi integrada institucionalmente às forças militares da Ucrânia e, ao menos desde 2014, vem sendo municiada pelos EUA, a exemplo do que fizeram com os mujahidins no Afeganistão e os Contras na Nicarágua.

O plebiscito no Donbass, região ocupada por pessoas etnicamente identificadas com os russos, ocorreu exatamente no contexto do golpe de 2014 e como resposta à deposição de Victor Yanukóvich, presidente ucraniano não alinhado com o Ocidente. A perseguição militar, com bombardeios e execuções contra sua população, tentou ser resolvida pela assinatura dos Acordos de Minsk entre Rússia, Ucrânia, França e Alemanha, cujo propósito de cessar-fogo não durou muito tempo por parte do governo ucraniano. Em apenas dois anos, o saldo foi de 10 mil mortos e 30 mil feridos.

Ignorar todos esses pontos ajuda a mitificar a figura de Zelensky, o herói improvável, o novo Churchill disposto a enfrentar os vilões de Rocky IV, Rambo III e da terceira temporada de Stranger Things.

Na mesma edição da Folha em que foi publicado o artigo de Bercito, outro colunista afirmou que “a complexidade da questão russa não deve nos impedir de ver o óbvio”. E qual seria esse óbvio? A escolha do lado “moralmente certo”, como ocorreria numa luta entre He-Man e Esqueleto.

Citando Yuval Harari, o autor afirma que desde 1945 nenhuma nação internacionalmente reconhecida foi apagada por conquista militar externa (os palestinos discordam), sendo essa a razão pela qual “o mundo inteiro se levanta em coro para apoiar a Ucrânia, mesmo que intelectuais continuem a adular Moscou”.

A lupa moral do pacifismo genérico, azeitada com revisionismos históricos e maniqueísmos infantis que interpretam o mundo como um filme da Marvel, é sempre o refúgio mais fácil para quem insiste em confundir aparência com essência.

Negar a complexidade dos acontecimentos e se enclausurar na confortável redoma da luta do bem contra o mal pode até ser útil para quem quer dormir bem à noite, mas não para entender o que de fato está acontecendo – e sem entender o que está acontecendo, não é possível apontar soluções, mesmo aquelas que dialogam com o pacifismo vulgar.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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