Jamil Chade

Jornalista, correspondente internacional, escritor e integrante do conselho do Instituto Vladimir Herzog

Opinião

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Primeiro passo

Trata-se de uma reparação simbólica às vítimas dos heróis de Bolsonaro

Primeiro passo
Primeiro passo
Bolsonaro na residência de luxo onde cumpre prisão domiciliar, em Brasília – Foto: Sergio Lima / AFP
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Na porta de seu gabinete, o então deputado Jair Bolsonaro mantinha um cartaz que dizia que “quem busca osso é cachorro”, numa ironia aos esforços para encontrar os restos mortais das vítimas no Araguaia. Em sua sala, exibia com orgulho as fotos dos generais que, durante 21 anos, mantiveram com repressão, censura e morte a ditadura.

Ao votar pelo impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro prestou uma homenagem a um dos torturadores da ex-presidente, o coronel Carlos Alberto Brilhante Ustra. Na Presidência, o líder do complô golpista reuniu-se com a viúva do coronel no Palácio do Planalto. O presidente chamou o agente repressor de “herói nacional”, enquanto recebia Maria ­Joseíta Silva Brilhante Ustra em 8 de agosto de 2019. Um ano depois, recebeu Sebastião Curió, o Major Curió, à época com 81 anos. Tratava-se do oficial do Exército que comandou a repressão à Guerrilha do Araguaia e que foi denunciado pelo Ministério Público Federal por homicídio e ocultação de cadáveres durante a ditadura. Em 2009, ao jornal O Estado de S. ­Paulo, Curió afirmou que o Exército executou 41 guerrilheiros no Araguaia.

Bolsonaro e sua cúpula militar acabam de enfrentar, no entanto, o que os criminosos da ditadura entre 1964 e 1985 jamais tiveram de enfrentar. Num julgamento histórico foram condenados por tentativa de golpe de Estado, inspirados justamente por aqueles torturadores aos quais eles mesmos prestaram homenagem ao longo dos anos.

O Brasil, ao usar o Estado de Direito para dar uma resposta a uma tentativa de ruptura democrática, marcou uma página de sua história. Uma ruptura a uma tradição de anistias, supostamente construídas para promover uma falsa pacificação. Mas que apenas perpetua­ram a impunidade.

Naquela sala do STF realizava-se uma reparação, ainda que parcial, a todos aqueles que jamais tiveram a chance de ser atendidos pela Justiça. Aqueles que, pelas atitudes de Bolsonaro, foram uma vez mais torturados e humilhados.

Ainda que insuficiente, assistimos a um tributo indireto às vítimas do torturador Ustra. Um resgate da dignidade de Gilberto Natalini e Adriano Diogo, Luiz José da Cunha, Antônio Carlos Bicalho, Marcos Nonato da Fonseca, Anamaria Nacionovic, Carlos Nicolau Danielli, Luiz Vergati, Roberto Martin, Carlos Vitor Alves Delamonica, Crimeia de Almeida, Luiz Eduardo Merlino, Toshitami Fujimori, Joaquim Alencar Seixas e Ivan Seixas.

Uma resposta simbólica a Amelinha Teles, torturada diante de seus filhos de 4 e 5 anos. Uma deferência a Alexandre Vannucchi Leme, morto no DOI–Codi, em 1973, sob o comando de Ustra.

Ao usar o direito, as instituições da democracia e a Constituição, o Brasil ainda desenha os contornos de uma reparação às vítimas de Curió, entre eles os guerrilheiros e camponeses do Araguaia João Carlos Haas, Lourival Paulino, os filhos de ­Laura Petit da Silva – Lúcio, Jaime e Maria.

Em Brasília, o fim da ideia de impunidade é ainda um sinal de que, 50 anos depois da morte de Vladimir Herzog pela ditadura, não estamos dispostos a rifar a nossa liberdade.

Sozinhas, reparações não são respostas. Acima de tudo, os autores dos crimes precisam ser levados à Justiça, suas histórias precisam ser ensinadas e a verdade deve nortear a atitude da sociedade e das instituições. Não se trata de uma obsessão pelo passado. Mas a construção de nosso futuro comum.

Num recente informe, a relatoria da ONU para Verdade, Memória e Justiça alertou que, “embora o Brasil tenha feito progressos significativos para resolver essas questões desde 1985, a implementação insuficiente de políticas de justiça transicional para lidar com as consequências da ditadura infelizmente levou a ataques recorrentes à democracia, aos direitos humanos e ao Estado de Direito”. O informe aponta que essa situação manteve uma divisão social e obscureceu os fundamentos do direito internacional e dos direitos humanos. “Enquanto os direitos à verdade, à justiça, à reparação e à memória não forem garantidos a todas as vítimas da ditadura, essa divisão poderá persistir e a história poderá repetir-se”, alertou Bernard Duhaime, relator da ONU.

Para mudar esse rumo, ele defendeu que o Brasil implemente de forma urgente o pacote de justiça transicional proposto no relatório final da Comissão Nacional da Verdade.

Ainda assim, de forma simbólica, o julgamento de Bolsonaro e da cúpula militar é um primeiro passo. Pedagógico, o processo serve para revelar com detalhes como funcionam os mecanismos de assassinato de uma democracia.

O julgamento fortalece a democracia como nosso instrumento para a justiça social, consolida o Estado de Direito como arma para um pacto social e é a confirmação da Constituição, não da força, como trampolim para um futuro. •

Publicado na edição n° 1379 de CartaCapital, em 17 de setembro de 2025.

Este texto aparece na edição impressa de CartaCapital sob o título ‘Primeiro passo’

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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