Justiça

Precisamos mudar a fotografia do poder

Se as instituições precisam representar a população brasileira, é imprescindível que o olhar de uma mulher negra seja levado em consideração no momento de julgar os temas mais urgentes da nossa sociedade

Precisamos mudar a fotografia do poder
Precisamos mudar a fotografia do poder
Foto: Tânia Rêgo/Agência Brasil
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Nestes últimos dias as redes sociais e os noticiários só falavam de uma coisa: A nova indicação para o STF. E com ela a oportunidade de mudarmos a fotografia do poder com a indicação, pela primeira vez, em 134 anos, de uma mulher negra.

Nos últimos 10 anos, entre a primeira e a segunda Marcha Nacional das Mulheres Negras, o Brasil avançou a passos lentos na entrada de mulheres negras em espaços de poder, sobretudo no legislativo. Tivemos a eleição de Marielle Franco, por exemplo, com mais de 46 mil votos para vereança na cidade do Rio de Janeiro representando a vontade da sociedade brasileira por mais representatividade nos espaços de poder. No entanto, não fomos capazes de observar esses mesmos avanços, ainda que a quem do que gostaríamos, no judiciário.

O judiciário é um espaço estratégico para garantir o acesso e a execução das políticas públicas de forma igualitária, conforme indica nossa constituição. É este espaço que garante a proteção das maiorias minorizadas frente a qualquer tentativa de violação de seus direitos. É também lá que são tomadas decisões que mudarão de forma direta e permanente a vida das pessoas. E quando pensamos na instituição mais significativa do sistema judiciário, o Supremo Tribunal Federal, toda essa natureza e importância se eleva à máxima potência em termos de impacto.

E porque é tão importante termos uma mulher negra na mais alta corte brasileira? A resposta é simples, porque as instituições precisam representar a população brasileira. E considerando a natureza do trabalho dos ministros do supremo, que é julgar com base na constituição brasileira, e no poder que eles têm de garantir que os direitos sejam preservados, protegidos e cumpridos à nível nacional, uma composição que traga olhares diversos será mais justa.

As questões que chegam à Suprema Corte impactam diretamente a vida da população brasileira, sobretudo de seus maiores grupos demográficos: mulheres e pessoas negras. No entanto, sob um olhar limitado pelo racismo e pela misoginia institucional, agendas fundamentais como a justiça reprodutiva, e a igualdade salarial entre homens e mulheres permanecem paralisadas ou interpretadas de forma restrita, porque o entendimento da lei segue preso a uma perspectiva única, excludente e discriminatória, escorada na velha desculpa de que “o Brasil não está preparado”.

Outra resposta à essa pergunta é: Porque queremos que o olhar de uma mulher negra seja levado em consideração no momento de julgar os temas mais urgentes da nossa sociedade. Como por exemplo, o tema da descriminalização do aborto, tendo em vista que as mulheres mulheres negras apresentam uma probabilidade 46%³ maior de fazer um aborto, em todas as idades, com relação às mulheres brancas. Ou sobre a ADPF das favelas, que versava sobre as operações policiais nas favelas do Rio de Janeiro, que são territórios majoritariamente negros.

Erra quem pensa que o olhar e a visão de mundo e justiça das mulheres negras se restringe a temas relacionados a gênero e raça. Temos visão estratégia e interpretação da realidade brasileira. Por isso, é importante frisar a latente necessidade desse olhar em temas que dizem respeito à nossa sociedade e democracia de maneira geral. Queremos debater temas como trabalho por aplicativo, proteção ambiental, justiça tributária, direito do idoso, violência política, proteção de terras indígenas, direitos reprodutivos, entre outros. Temas que afetam a todos.

Casos importantíssimos para o Brasil estão à espera de serem julgados no STF, como por exemplo o julgamento dos mandantes do assassinato de Marielle Franco e Anderson Gomes. Processo que a sociedade brasileira espera por respostas há mais de 7 anos, mas que ainda não tem data para acontecer. Com este caso, o STF terá a oportunidade de, mais uma vez, demonstrar o poder das instituições e a fortaleza da democracia brasileira. Imaginar que seria possível ter uma mulher negra julgando o caso de Marielle, uma mulher negra que ousou ocupar espaços, representaria que os desejos de igualdade presentes na nossa constituição, se tornaram realidade. Que mulheres, como Marielle, não estão apenas nas ruas, nas universidades ou nas comunidades resistindo, mas também no topo das instituições, decidindo o futuro do país.

Nossa visão entende que a disputa é estrutural, não apenas simbólica. A presença de mulheres negras em espaços de poder e tomada de decisão, como o Supremo Tribunal Federal, é uma medida concreta de reparação histórica e transformação social. Quando mulheres negras ocupam esses espaços, ampliam-se os marcos interpretativos da Constituição com lentes interseccionais de raça e gênero, fortalecendo a democracia e o acesso à Justiça para todas e todos.

Uma ministra negra levaria para o centro do Judiciário uma leitura da Constituição atravessada por vivências, que são compartilhadas com mais da metade da população brasileira. Essa perspectiva é fundamental para debates e sustentações diversas e complementares dentro do tribunal. O desejo por representatividade nada mais é que uma medida de reparação que busca um benefício coletivo de maior pluralidade nos espaços de poder e tomada de decisão.

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