

Opinião
Por uma globalização da liberdade e do conhecimento
Precisamos refletir sobre novas escolhas, mais locais – porém mirando o infinito da criação, da liberdade, das trocas


‘O mundo estava calado quando nós morremos’
Chimamanda Ngozi Adichie
Esse é o título de um livro escrito por uma personagem do maravilhoso romance da premiada escritora nigeriana. A história ocorre durante a guerra separatista de Biafra, entre 1967 e 1970, conflito que culminou em uma das piores emergências alimentares da história e na vitória do governo central da Nigéria.
A frase, no entanto, serve para muitas outras situações contemporâneas — de Mianmar, dominado por militares genocidas, à Palestina, sob o jugo do Estado de Israel, cujos diplomatas já deveriam ter sido expulsos do Brasil há muito tempo (os de Mianmar, também).
Como hoje é 31 de março, véspera do golpe de 1º de abril de 1964, não se pode ignorar a pertinência da indagação feita pela escritora africana no contexto brasileiro. É sintomático que o jornal Zero Hora, da Rede Brasil Sul (RBS, afiliada da Rede Globo), não tenha feito qualquer menção à quartelada na edição de hoje — golpe que apoiou, assim como a própria Globo, e que resultou em milhares de pessoas torturadas e mortas, em sua maioria brasileiras.
Como é fácil apagar a história quando se detêm os meios hegemônicos de comunicação.
Vale lembrar que a quebra da legalidade teve apoio quase unânime da imprensa nacional, com exceção do jornal Última Hora e da TV Excelsior — ambos devidamente “falidos” pelos militares. Como sempre, o feitiço virou contra o feiticeiro, e O Estado de S. Paulo foi tão censurado quanto qualquer outro jornal, optando por publicar receitas de bolos nos espaços suprimidos pela ditadura.
Hoje, ao me deparar com a notícia de que a Itália, governada pela extrema-direita, decidiu restringir a concessão de cidadania a filhos e netos de italianos — esclareço que sou neto de italiano, mas só desejo distância de fascistas — resolvi emular o glorioso jornal da oligarquia rural paulista e responder a Giorgia Meloni com uma receita.
Trata-se de um ícone da gastronomia italiana: o cappuccino.
Pois bem, para quem não mais poderá ir ao Santo Eustáquio — o melhor café de Roma, com o melhor cappuccino — com um passaporte italiano (que também dá direito a contrair automaticamente uma dívida incomensurável, pois a Bota deve mais de 140% do próprio PIB), segue uma receita honesta, que revela a origem dos ingredientes e como prepará-la em casa, sem máquinas.
Lembremos: o café tem origem etíope, descoberto por cabras africanas nas colinas de Kafa, na Etiópia — país que a Itália, séculos depois, sob o fascismo de Mussolini, invadiria, sendo devidamente escorraçada, como sempre será a extrema-direita, em qualquer latitude, como Bolsonaro, filhos e generais, na conjuntura nacional.
O chocolate, por sua vez, tem origem americana, azteca, mexicana. À perícia italiana, coube uni-los na dose e temperatura ideais.
Entretanto, é possível fazer em casa uma bebida tão boa quanto — e até melhor — sem torturar vaquinhas, separando-as de suas crias para lhes roubar o leite.
Vamos à receita: açúcar orgânico (pois o agro já nos envenena suficientemente), café solúvel também orgânico (só conheço o da marca paulista Native) e chocolate orgânico em pó. Adicione leite de aveia com cacau, também orgânico, produzido pela paranaense Nude. Pronto. Você preparou um cappuccino mexicano.
Prove e diga se não é tão bom quanto o melhor italiano, mas com um gostinho adicional de América, de Mundo Novo — inspiração trazida pela valente presidenta do México, Claudia Sheinbaum.
De fato, precisamos refletir sobre novas escolhas, mais locais, porém mirando o infinito da criação, da liberdade, das trocas — sem barreiras, tarifas ou polícias fronteiriças — como fazem, e sempre fizeram, os povos originários, nossos indígenas, os verdadeiros donos desta terra.
Tentemos não restringir a globalização ao comércio, como até algumas esquerdas ainda fazem.
Não é essa a globalização que queremos, por certo. Derrubar tabus, preconceitos, distâncias artificiais é o que deveria nos orientar.
Em Seja homem, de JJ Bola (Editora Dublinense – compre pela Amazon), o autor corretamente reflete:
“O que nos traz para uma afirmação inevitável: enquanto houver tabu nas discussões sobre saúde mental, questões graves como o suicídio vão continuar sendo menosprezadas e jogadas debaixo do tapete.”
Esses são os temas que precisam viajar: como outros povos tratam a questão? O que temos a aprender? O que temos a ensinar?
O autor, congolês radicado na Inglaterra, mostra o caminho e ilumina a estrada:
“…em uma sociedade na qual os homens são esmagadoramente violentos com outros homens, um homem amando outro é um ato radical e progressista. Aliás, como é possível que a gente, como sociedade, seja mais permissivo com a violência masculina do que com o amor entre os homens? Deveria ser o contrário: normalizarmos o amor entre homens como uma maneira de combater a violência masculina.”
Bola vai além:
“Os homens precisam se sentir à vontade para dizer ‘eu te amo’ a outros homens, sem a necessidade de acrescentar ‘cara’, ‘mano’ ou ‘parceiro’, ou sem ter que dizer que é um amor ‘sem veadagem’, o que só reduz a expressão do amor de um homem pelo outro a uma questão de sexualidade. E não é: o amor e o movimento de nos aceitarmos, ao mesmo tempo em que nos envolvemos com as pessoas ao redor, nos deixam à vontade na própria pele.”
De forma corajosa, ele associa a limitação do conceito de gênero — como faz a extrema-direita anglo-saxônica nos Estados Unidos atualmente — ao colonialismo, provando que:
“…a fluidez de gênero era um conceito bastante normal na Índia de séculos atrás, até os britânicos chegarem e a colonizarem.”
Mais ainda, mostra como a atual rigidez de Trump e asseclas representa o colonialismo anglófono in loco, pelo qual os opressores buscam justificativas falsamente morais para mascarar a dominação cultural, política e econômica que almejam:
“O conceito que reconhece a existência de mais gêneros do que o pressuposto pelo típico binarismo entre masculino e feminino também é parte importante da cultura e da sociedade nativa norte-americana, onde até cinco gêneros são reconhecidos. Sobre este tema, o professor de antropologia e gênero da Universidade do Sul da Califórnia, Walter L. Williams, escreveu que os nativos norte-americanos normalmente tinham indivíduos intersexuais, andróginos, homens femininos e mulheres masculinas em alta conta nas suas comunidades, e que o termo mais comum para definir essas pessoas era ‘dois espíritos’.”
Por uma globalização da liberdade e do conhecimento, vale a pena lutar.
Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.
Apoie o jornalismo que chama as coisas pelo nome
Muita gente esqueceu o que escreveu, disse ou defendeu. Nós não. O compromisso de CartaCapital com os princípios do bom jornalismo permanece o mesmo.
O combate à desigualdade nos importa. A denúncia das injustiças importa. Importa uma democracia digna do nome. Importa o apego à verdade factual e a honestidade.
Estamos aqui, há 30 anos, porque nos importamos. Como nossos fiéis leitores, CartaCapital segue atenta.
Se o bom jornalismo também importa para você, nos ajude a seguir lutando. Assine a edição semanal de CartaCapital ou contribua com o quanto puder.