Letícia Cesarino

Antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de 'O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital'

Opinião

Por que ninguém previu o Capitólio brasileiro?

As lições que podemos tirar do trágico evento para os próximos quatro anos

Ação golpista em Brasília em 8 de janeiro. Foto: Ton Molina/AFP
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Inúmeros jornalistas, pesquisadores, ativistas e usuários comuns de internet acompanhavam grupos, perfis e canais bolsonaristas em redes sociais e em aplicativos de mensageria. Diante do aumento da tensão após a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro, muitos deles expressaram receio de que algum tipo de evento violento como a invasão do Capitólio estadunidense pudesse acontecer. Mas até onde sei, ninguém conseguiu cravar exatamente quando e como ele ocorreria. Por que?

A resposta simples é: porque nem seus perpetradores sabiam. Até muito perto do evento em si, o comportamento global dos públicos bolsonaristas não pareceu divergir significativamente daquele observado em outros momentos de tensão – o que tem sido a regra desde o resultado da eleição. De fato, circularam conteúdos propondo ocupação do Congresso e outras formas de intervenção off-line, como sabotagem de infraestruturas. Mas esse tipo de discurso extremo propondo ação direta sempre fez parte daquele ecossistema e, no mais das vezes, ele se mantinha no online. O que mudou, portanto?

Tudo indica que, desta vez, fizeram diferença fatores contextuais que permitiram com que os segmentos extremos contagiassem rapidamente o resto da multidão raivosa, fazendo com que a violência discursiva latente nos públicos digitais resvalasse para violência de fato no mundo off-line. E daí tiramos uma primeira lição: a inteligência de redes precisa ser complementada por outros tipos de inteligência, naquele caso, referentes ao financiamento do transporte e manutenção de um grande contingente de manifestantes em Brasília e a subestimação, possivelmente proposital, do risco de violência pelas forças de segurança do Distrito Federal.

O Capitólio brasileiro deixa claro, ainda, que propriedades técnicas das mídias digitais tornaram-se traços sociais dos públicos da extrema direita: a aceleração temporal, a não-linearidade, o viés de confirmação (ou, em termos cibernéticos, feedback positivo). Desta vez, chamou atenção a rapidez e fluidez com que os “patriotas” se reorganizaram. Quando tudo indicava que, após a posse do novo governo e a desarticulação dos acampamentos nas cidades, eles entrariam num período de refluxo, o contrário ocorreu: eles partiram para um escalamento da oposição.

Isso significa que, por um lado, que a extrema direita já construiu uma infraestrutura de organização própria bastante azeitada, ancorada em camadas mais fechadas da internet como o WhatsApp e grupos secretos no Telegram. A dinâmica dessa infraestrutura é bastante repetitiva, até mesmo previsível. Mas por outro lado, e de modo aparentemente paradoxal, significa que seus efeitos offline podem estar se tornando menos previsíveis. A extensão dessa infraestrutura aumenta a probabilidade de eventos não-lineares como os de 08/01 acontecerem – basta um contexto propício.

Outra lição que fica é que, como venho defendendo, devido à sua dependência das novas mídias cibernéticas, a extrema direita precisa ser vista sob um ponto de vista ecológico. Ou seja, sua forma de organização e tomada de decisão se dá menos na escala dos atores e grupos individuais do que do sistema co-emergente que eles foram.  E do ponto de vista ecológico, não existe golpismo moderado. Por mais que o discurso predominante no ecossistema bolsonarista seja o dos meios ‘constitucionais’ para atingir seu propósito comum – pressionar as Forças Armadas a removerem um governo legitimamente eleito – a virada de chave da manifestação pacífica para a da guerra pode ocorrer, como se viu, de uma hora para a outra. Afinal, o sentido que os bolsonaristas atribuem à expressão ‘quatro linhas’ é o avesso do nosso: eles veem ali o que seria um ‘ponto cego’ na Constituição de 1988 (Artigo 142 e afins) que permitiria a sua própria suspensão por meio de uma intervenção militar.

O 8 de janeiro é, ainda, um forte indício de que a dinâmica global do bolsonarismo está mudando com a inversão do contexto político-institucional, onde agora é o ‘inimigo’ que está no poder. Ele está se tornando mais auto-organizado, porém não no sentido de ter se tornado mais espontâneo e horizontal, como muitos ‘patriotas’ acreditam. Enquanto presidente, Jair Bolsonaro ocupava uma posição única que não apenas integrava os diferentes segmentos da extrema direita, mas lhe permitia controlar indiretamente a relação entre estes e os públicos convencionais. Durante o seu governo, isso vinha se dando em ciclos alternados de escalamento (feedback positivo) e refluxo (feedback negativo) do golpismo. Sem ele na presidência, o público da extrema direita parece estar se transmutando de um comportamento populista para um propriamente extremista.

Finalmente, podemos antecipar quatro anos de tensionamento constante pela frente, em que não será possível baixar a guarda. Os intermediários da extrema direita (influenciadores, canais, mídias alternativas) já acirraram o comportamento que venho chamando de mímese inversa, ou seja, imitar a forma do inimigo, mas com conteúdo invertido: algo como ‘jogar o feitiço contra o feiticeiro’. Assim, se Anderson Torres está sendo acusado de leniência ou possível conluio com os golpistas, eles imediatamente lançam a narrativa inversa, de que Flávio Dino teria sido leniente ou mesmo responsável por montar uma armadilha para os ‘patriotas’. Se os gastos do cartão corporativo de Bolsonaro são publicizados, eles mostrarão imediatamente o ‘outro lado’: os gastos de Lula e Dilma. E assim indefinidamente, e de modo bastante previsível.

A recorrência desse padrão anuncia uma nova forma de oposição política baseada em um algoritmo simples para constantemente desfazer e desestabilizar o novo governo, e que é facil e rapidamente replicável por usuários comuns. O ‘exército’ de patriotas continuará atuante, seguindo os comandos dos influenciadores e do seu próprio corpo cibernético auto-organizado. Afinal, existe um elemento técnico e cognitivo que torna muito difícil desfazer a ‘Gestalt’ na qual essas pessoas entraram. A não ser que essa infraestrutura seja combatida na sua raiz, a violência off-line seguirá como uma possibilidade latente ao longo de todo o período.

 

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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