Opinião

Por que escolher a democracia e a vida comunitária em vez do horror e barbárie

Se a cultura é o alimento da alma, de que nos tem alimentado a extrema-direita nesses terríveis anos: de nada

Lula e Jair Bolsonaro. Fotos: Ricardo Stuckert e Evaristo Sá/AFP
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“…nos han escrito pidiéndonos ciertos pájaros que desean enviemos al Rey. Sentimos mucho no podérselos enviar, porque dichos pájaros viven en las selvas donde Dios los cria, y huyen volando de nosotros, de modo que no podemos darles alcance.” – Cabildo missioneiro de San Luis.

Essa belíssima resposta escrita pelos índios missioneiros de São Luiz, nas Missões Jesuíticas que se implantaram durante século e meio no oeste do Rio Grande do Sul (do início do século XVII à metade do século XVIII) sintetiza à perfeição o respeito dos indígenas pela natureza, nela incluídas a fauna e a flora.

Embora o governador espanhol tivesse pedido pássaros para serem enviados ao próprio rei, a resposta dos indígenas deixa claro que isso não seria possível, porque “vivem nas selvas, onde Deus os cria, e fogem voando de nós, de modo que não podemos alcançá-los.”

A aparente ingenuidade do argumento encerra uma belíssima e sofisticada lógica de que não pertencem aos humanos aqueles seres, divinos, que, por isso, não são passíveis de captura.

São livres – esse o seu status, por direito divino.

Entretanto, contra essa belíssima experiência comunal, holística, insurgir-se-iam as potências de Portugal e Espanha, reduzindo-a, pela força das armas, à destruição quase total.

Com efeito, em “San Luis, a Missão” (Martins Livreiro – Editora), de Anna Olivia do Nascimento e Anderson Iura Amaral Schmitz, lemos: “A expulsão dos jesuítas provocara a imediata decadência das Missões Orientais do Uruguai. Sob o regime comunitário imposto pelos jesuítas, os povos por eles fundados alcançaram uma notável prosperidade, principalmente em meados do século XVIII. Mas os administradores, pós-expulsão da Companhia de Jesus, adotando o sistema de livre iniciativa, fizeram ruir a estrutura social construída pela fé.”

Importante notar que justamente a região das Missões, no RS, deu vitória a Lula, no primeiro turno, deixando claro que a árvore do bem foi cortada, mas suas raízes permanecem vivas.

No momento em que deveremos – mais uma vez em nossa história – escolher entre a democracia e a vida comunitária, ou o horror, a barbárie, vale a pena revisitar o último livro do grande escritor austríaco Stefan Zweig, intitulado “O livro do Xadrez” (editora Fósforo), escrito no exílio brasileiro, quando fugia dos horrores do nazismo na Áustria, invadida pela Alemanha de Hitler.

Às vésperas de superar seis anos de golpe de estado e regime de extrema-direita, vale recordar as lembranças e reflexões de Zweig sobre aquela dramática experiência europeia, da qual a extrema-direita brasileira emula táticas e estratégias: “Quando Hitler subiu ao poder na Alemanha…começou a assaltar os bens da igreja e dos mosteiros…”.

Alguma semelhança com o que se afigura no Brasil atual, por parte das ordas bolsonaristas?

Zweig esclarece como o totalitarismo se instalara na Áustria: “No entanto, antes de armarem suas tropas contra o mundo, os nazistas começaram a organizar um exército, também perigoso e treinado, em todos os países vizinhos: a legião dos desfavorecidos, dos preteridos, dos ressentidos. Em toda repartição, em toda empresa instalaram-se suas ‘células’; em qualquer função, até no escalão superior, nos aposentos particulares…encontravam-se postos de escuta e espiões. Mesmo em nosso escritoriozinho eles tinham um homem, como vim a saber, infelizmente tarde demais. Era de fato um funcionário deplorável e sem talento, contratado por recomendação de um padre só para dar ao escritório a aparência de uma firma regular; na realidade, nós o solicitávamos para simples entregas de mensagens, para atender o telefone e organizar a papelada, os documentos totalmente sem importância e inofensivos…Só bem mais tarde, quando eu já estava na prisão havia muito tempo, lembrei-me de que sua negligência inicial no serviço havia se transformado, nos últimos meses, num entusiasmo repentino, e que ele se oferecera várias vezes, quase de modo impertinente, para levar minha correspondência ao correio. Não posso me eximir de certa imprudência, mas os grandes diplomatas e militares do mundo também não foram enganados perfidamente pela horda hitlerista?”.

Se essas semelhanças com o operar da extrema-direita brasileira não bastassem, o autor traz ainda outro traço comum aos dois regimes: “Não nos fizeram nada – só nos deixaram num completo vazio, pois é sabido que não existe nada no mundo que cause tanta pressão na alma humana como o nada.”

Se a cultura é o alimento da alma, de que nos tem alimentado a extrema-direita nesses terríveis anos: de nada.

A respeito da dramática experiência do vazio, o autor relata o encontro do prisioneiro com um livro: “…um LIVRO! Fazia quatro meses que não pegava um, e só a imagem de um deles já era inebriante e entorpecedora: um livro no qual podíamos ver palavras enfileiradas, linhas, páginas e folhas, no qual podíamos ler, seguir e levar para o cérebro outros pensamentos, pensamentos novos, desconhecidos, que distraíssem.”

Em que momento este desgoverno mencionou sequer a palavra “livro”? Pelo que me recordo, foi apenas para dizer que eles têm muitas páginas, palavras demais (sic).

Zweig ainda recorda que “re-member…significa ‘reconstituir ou reunir aquilo que foi desmembrado”.

Sobre o porque amo esta terra para a qual vieram meus avós, ainda recorro derradeiramente a Zweig, em citação no posfácio de Mariana Holms: “Os outros queimaram o navio atrás de si, se americanizaram, até desistiram da sua língua – eu estou muito velho para tudo isso”.

Ainda no belo posfácio, Mariana nos traz uma exortação de muita esperança para votarmos no dia 30: “…uma ética da alteridade, na qual é preciso suportar a visão do real, olhar atentamente saídas possíveis, enxergar o outro e não se perder nesse olhar.”

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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