Letícia Cesarino

Antropóloga, professora e pesquisadora na Universidade Federal de Santa Catarina. Autora de 'O Mundo do Avesso: Verdade e Política na Era Digital'

Opinião

Por que é tão difícil conter o terrorismo bolsonarista

A estrutura do discurso fascista ajuda a explicar por que quem nega o resultado eleitoral jamais reconhecerá a violência dos ‘cidadãos de bem’

Créditos: Divulgação GDF
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Diante das ações violentas de “patriotas” inconformados com a derrota eleitoral de Jair Bolsonaro, começou-se a debater a emergência e formas de controle do terrorismo doméstico de direita no Brasil. Esta é uma realidade levada bastante a sério por países como EUA e Alemanha, que têm levado à frente investigações e punições por tentativas de ruptura da ordem democrática por parte de grupos organizados de extrema direita. 

Não tem sido simples, contudo, enquadrar essas ações na Lei Anti-Terrorismo brasileira, aprovada em 2016. À época, foram incluídos vetos e dispositivos visando prevenir sua aplicação política a movimentos sociais de esquerda, como o MST. Em seu artigo 2, por exemplo, a Lei restringe a definição de terrorismo a atos motivados por “razões de xenofobia, discriminação ou preconceito de raça, cor, etnia e religião”. Mas, e se não for possível definir a extrema-direita brasileira por um tipo de pauta específica?

O que parecia óbvio na época em que a lei foi aprovada foi profundamente embaralhado pela ascensão do bolsonarismo pouco tempo depois. Sabemos que o futuro ex-presidente e seus aliados operam uma comunicação ambígua que oscila sempre entre dois níveis, um político e um meta-político. Suas falas incluem muitos “apitos de cachorro” para a base extremista, mas que dificilmente assumem um caráter explícito ou inegavelmente racista ou xenofóbico. Essa força política, que qualifico como anti-estrutural, opera justamente mimetizando e corroendo por dentro discursos e práticas da esquerda e do campo progressista democrático. 

Teorias sobre o extremismo político e sua forma final, o fascismo, sugerem que movimentos desse tipo são definíveis menos por um conteúdo específico do que por uma forma de operação do político, que é o avesso da democracia liberal. Nela, a vontade de poder engloba os pesos e contrapesos institucionais; a gramática da guerra engloba a política; a busca da pureza engloba o pluralismo; a estética engloba a substância. Quanto mais extremista, mais o discurso se ancora em significantes vazios, ou seja, termos que podem ser preenchidos por praticamente qualquer conteúdo projetado pelo receptor da mensagem a partir da sua experiência pessoal: Pátria, Deus, liberdade, família (e também os discursos negativos anti-corrupção, anti-comunismo etc).

Esse englobamento do conteúdo pela forma significa que, como também ocorreu no fascismo histórico, o próprio discurso do líder torna-se plástico, se adaptando continuamente às insatisfações e demandas dos seus seguidores. O líder fascista é, nesse sentido, uma projeção da vontade de poder e liberdade ilimitada das massas (num recente ato falho que achei bem significativo, um dos patriotas no Alvorada orou: “seja feita a nossa vontade”). A plataformização da internet facilitou sobremaneira esse tipo de crowdsourcing, pois disponibiliza já prontas as métricas algorítmicas para que o líder receba esse feedback em tempo real, e ajuste seu comportamento de acordo.

Não é coincidência, portanto, que os slogans da extrema-direita se repitam ao longo da história. Pátria, Deus, liberdade são noções que perfazem o que o antropólogo Victor Turner chamou do “núcleo cultural” das sociedades ocidentais capitalistas com Estado. São significantes vazios que não têm um referente concreto no mundo real, sendo acessíveis apenas por meio de símbolos como bandeiras ou cores, e pelos rituais que os mobilizam.

Segundo Turner, são esses símbolos – representações daquilo que a sociedade sente como mais autêntico e puro – que operam a formação de novas identidades em espaços liminares, ou seja, fora da estrutura social convencional. Como argumentei em outra ocasião, a internet de hoje fornece múltiplos espaços liminares desse tipo, como os grupos de WhatsApp em que se forjou a nova identidade da direita conservadora em torno da figura de Jair Bolsonaro em 2018. 

Hoje, esses espaços liminares online se transfiguraram nos espaços liminares off-line que vemos na frente dos quartéis. Os “patriotas” ali reunidos formam o que Turner chamou de communitas: uma sociabilidade emergente e altamente homogênea forjada fora de – no caso, em oposição a – os parâmetros da estrutura sócio-política convencional. Por não se basear nesta última, a produção desse tipo de identidade é altamente ritualizada – o que temos visto nos desfiles, coreografias, jograis e orações diariamente realizados por eles. Esses vídeos são então compartilhados com outros patriotas em mídias sociais e aplicativos de mensagens, produzindo uma experiência de simultaneidade e portanto de coesão do “povo”. 

Finalmente, a estrutura do discurso fascista ajuda a explicar por que os patriotas que negam o resultado eleitoral jamais reconhecerão que tais atos violentos tenham sido executados por “cidadãos de bem” – preferindo apelar para explicações conspiratórias a respeito de infiltrados e false flag. Por ser pura forma desvinculada de uma substância no mundo real, sua comunicação opera cognitivamente a partir de um procedimento que também perfaz a arquitetura das plataformas, e que Lury e Day chamaram de “individuação a-típica”: um modo de inclusão recursiva em que “tanto o indivíduo quanto o tipo estão sendo constantemente re-especificados”.  

No nível do discurso humano, esse procedimento algorítmico se assemelha à “falácia do escocês verdadeiro”, ou no true Scotsman. Ao serem confrontados com uma evidência – patriotas queimaram carros e ônibus em Brasília –, a reação não é rever os axiomas iniciais (no caso, cogitar que pode haver terroristas domésticos entre os patriotas). Pelo contrário, se modifica o objeto da afirmação de modo a excluir retoricamente aquele caso específico: nenhum patriota de verdade faria tal coisa. Cadê as mulheres, crianças, idosos, vestidos de verde e amarelo? Patriotas não cobrem o rosto, não usam preto. Isso é coisa de black blocs. Só podem ser esquerdistas infiltrados.

Este texto não representa, necessariamente, a opinião de CartaCapital.

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